sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Editora Springer Nature retira 75 estudos do reitor de Salamanca por práticas fraudulentas

Uma das principais editoras científicas do mundo, Springer Nature, decidiu retirar de uma só vez 75 estudos científicos de Juan Manuel Corchado, reitor da Universidade de Salamanca, e de seus colaboradores. A multinacional iniciou uma investigação em maio, após o EL PAÍS revelar mensagens internas que demonstravam que Corchado solicitou a seus funcionários durante anos que adicionassem dezenas de menções ao seu trabalho em cada estudo, com o intuito de fingir ser um dos cientistas mais citados do mundo. O número de estudos retratados, sem precedentes na Espanha, transforma o caso de Corchado no maior escândalo conhecido da ciência espanhola.

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Chris Graf, diretor de integridade científica da Springer Nature, explica que a retratação dos 75 estudos já está em andamento. “Nossa investigação identificou vários problemas, incluindo, entre outros, dúvidas sobre a gestão editorial, citações inadequadas ou incomuns e conflitos de interesse não declarados”, aponta Graf. O grupo de Corchado organizava uma infinidade de congressos e aproveitava suas atas, publicadas pela Springer Nature, para adicionar uma quantidade excessiva de menções aos trabalhos do atual reitor de Salamanca, mesmo que não tivessem nenhuma relação com a temática. Este jornal já revelou em maio que, em apenas 75 publicações, os colaboradores de Corchado citavam quase 1.700 vezes o catedrático salmantino, uma artimanha que fazia com que o atual reitor aparecesse nos rankings internacionais como um dos cientistas mais citados do planeta em seu campo.

Algumas retratações já foram executadas, como a de um estudo sobre uma tecnologia para classificar odores, assinado por Corchado e com uma dezena de menções a si mesmo, e outro trabalho de seu colaborador Pablo Chamoso, sobre contagem de animais via drones, com 22 citações ao catedrático salmantino. Chris Graf garante que a Springer Nature leva muito a sério as denúncias que recebe. “As citações são um elemento importante da pesquisa acadêmica, para reconhecer com precisão as fontes, fornecer contexto, oferecer evidências, criar uma rota de pesquisa em benefício de outros pesquisadores e avaliar o impacto. É essencial que sejam aplicadas de forma adequada e responsável”, adverte Graf.

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Um dos pais da inteligência artificial na Espanha, Ramon López de Mántaras, pede ao reitor que assuma os fatos: “Sempre tive uma relação muito cordial com Corchado e por isso me dói saber que ele caiu na armadilha de inflar seus indicadores bibliométricos. Fiquei decepcionado. Se ele me tivesse pedido minha opinião, eu o teria aconselhado a reconhecer seu erro, em vez de embarcar em uma fuga para frente, e renunciar à sua candidatura a reitor para evitar prejudicar sua universidade”, opina.

Um relatório elaborado a pedido do Comitê Espanhol de Ética da Pesquisa certificou em setembro a “manipulação deliberada” e “sistemática” do currículo de Corchado. O documento, de 131 páginas, leva a assinatura de Emilio Delgado e Alberto Martín, dois pesquisadores da Universidade de Granada que são especialistas mundiais em como trapacear para enganar os rankings. Delgado e Martín concluíram que Corchado e seus colaboradores organizaram “uma fábrica de publicações e citações” com “estratégias baseadas em condutas editoriais questionáveis e más práticas, quando não em práticas abertamente fraudulentas”.

A resposta de Corchado foi um documento de 54 páginas, intitulado “Em defesa dos meus direitos” e publicado em 30 de setembro. Nesse argumentário, o reitor de Salamanca sugere que existe uma conspiração contra ele na qual participam o Comitê Espanhol de Ética da Pesquisa, EL PAÍS e os dois professores de Granada. A realidade é que as trapaças de Corchado reveladas por este jornal já apareceram na mídia internacional, como Science, Nature e Times Higher Education.

Ramon López de Mántaras fundou há três décadas o Instituto de Pesquisa em Inteligência Artificial, em Cerdanyola del Vallès (Barcelona). “Qualquer um com dois dedos de testa pode perceber que o relatório [dos especialistas de Granada] é impecável e bem argumentado. Os membros do Comitê Espanhol de Ética da Pesquisa que eu conheço têm uma ética e uma moral irrepreensíveis. Não se sustenta que haja qualquer tipo de complô obscuro, é um argumento ridículo”, aponta López de Mántaras, que é o único especialista fora da América do Norte que ganhou o prestigioso prêmio Robert S. Engelmore, dotado com um milhão de dólares.

A virologista espanhola Nonia Pariente dedica 16 anos às revistas científicas. É editora chefe da PLOS Biology, em Cambridge (Reino Unido), e antes foi da Nature Microbiology, em Londres. “Não se entende como uma pessoa com essas práticas manifestas possa ser reitor de uma universidade”, explica. “Parece-me vergonhoso, mas não raro. A forma de avaliar os cientistas é terrível em muitas partes, mas particularmente na Espanha. Há gente que publica artigos péssimos o tempo todo, porque isso funciona para as avaliações ao peso da ANECA”, lamenta. A Agência Nacional de Avaliação da Qualidade e Acreditação (ANECA) é a entidade que decide se um professor pode avançar para catedrático ou se merece aumentos salariais.

Pariente considera que o caso de Corchado é “uma vergonha” para a ciência espanhola. “O que me preocupa muito é que, mesmo assim, tenham votado nele para ser reitor. É inacreditável que os que votaram nele não vissem que isso é um problema. A universidade espanhola e os reitores deveriam se mobilizar”, instiga a editora. “Eu, se fosse Corchado, pediria demissão.”

O catedrático salmantino considera “uma questão menor” a retratação de 75 estudos de seu grupo. “Nem compartilhamos nem aceitamos a retirada desses artigos, perfeitamente revisados em processos de avaliação por pares e cujas referências são totalmente necessárias. De qualquer forma, a eliminação desses artigos, algumas dezenas entre os milhares que publicamos, representa um número ínfimo deles. Concretamente, no meu caso, trata-se de uma dúzia de artigos em workshops, nos quais não sou autor correspondente nem primeiro autor, entre quase mil nos quais colaborei”, afirmou em seu documento de 30 de setembro.

O biólogo Isidro Aguillo, responsável pelo Laboratório de Cibermetria do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC), atualiza todos os anos um ranking dos pesquisadores espanhóis mais citados, com dados do Google Acadêmico. Corchado aparecia na posição 157 de um total de 123.000 cientistas, até que o catedrático salmantino desativou seu perfil ao saber que o EL PAÍS estava investigando suas práticas. Aguillo é muito contundente: “Me preocupa especialmente a falta de resposta da comunidade acadêmica tanto local quanto nacional. É lamentável que o manto da impunidade que protege a prevaricação endogâmica e o nepotismo se estenda ao fraude e à manipulação.”

Corchado não só organizou o que se denomina um cartel de citações (um grupo de pesquisadores combinados para se citar uns aos outros), como também se beneficiou de cerca de 30 perfis falsos de cientistas inventados dedicados a citá-lo de maneira massiva na rede social ResearchGate. Além disso, Corchado, catedrático de Ciências da Computação e Inteligência Artificial, subia ao repositório científico GREDOS de sua universidade uma infinidade de documentos cheios de autocitações, como um parágrafo sobre edifícios inteligentes com 227 menções a si mesmo.

Graças a essas práticas, ele se gabava de ser o quarto cientista mais citado da Espanha em seu campo. O segundo mais citado era Enrique Herrera Viedma, que já teve um estudo assinado com Corchado retratado, no qual mais de 50% das citações estavam dedicadas ao catedrático salmantino. Herrera assumiu as funções de reitor da Universidade de Granada em setembro.

Corchado declara ser vítima de uma campanha de difamação. “Denunciei ameaças contra minha integridade física recebidas através do meu e-mail pessoal, vinculadas à minha candidatura a reitor da Universidade de Salamanca. Essas ameaças, enviadas de contas anônimas, continham mensagens que instavam a acabar com a minha vida”, afirma. O reitor salmantino também afirma que sua identidade foi usurpada. “Todos os delitos foram denunciados às autoridades policiais e judiciais competentes, e estão em fase de investigação, portanto não posso oferecer mais dados”, sustenta em sua resposta intitulada “Em defesa dos meus direitos”.

A epidemiologista Cristina Candal, da Universidade de Santiago de Compostela, dedicou sua tese de doutorado à má conduta na pesquisa científica. Ela não tem dúvidas em relação ao caso de Corchado. “É claramente má conduta científica. É um cartel de citações para manipular o sistema em benefício pessoal. Com esses indicadores inflacionados, você consegue mais financiamento e melhor salário. É uma competição completamente desleal. Não é nada ético”, sentencia.

Candal reconhece que a ANECA está dando passos para deixar de avaliar os cientistas pelo peso, mas insta a mudanças mais profundas. “Corchado é um sintoma do sistema. Essas coisas acontecem mais frequentemente do que pensamos”, alerta. A especialista lembra que o Comitê Espanhol de Ética da Pesquisa, um órgão independente criado há um ano pelo Governo e pelas comunidades autônomas, pode emitir relatórios e recomendações, mas pouco mais. Candal sugere dar poder sancionatório, como o Escritório de Integridade Científica que vigia o sistema público de saúde dos Estados Unidos. “O comitê de ética, na hora da verdade, não pode fazer nada. Está à vista. É como se os radares de trânsito, sempre que você é pego com excesso de velocidade, tirassem uma foto, mas não te multassem. Se não forem impostas sanções, continuará a haver má conduta científica”, adverte.

A professora de Santiago de Compostela acredita que Corchado deveria renunciar. “Quem tem poder para derrubar o reitor? O dano vai além de sua pessoa, está prejudicando sua própria instituição e todo o sistema universitário espanhol. Os meios internacionais estão ecoando. Parece-me muito gravoso que Corchado continue lá como cabeça de uma das instituições universitárias mais importantes deste país”, lamenta.

 

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