O que seria do ser humano sem a memória? Sem aquelas imagens claras ou borradas que se entrelaçam e ganham forma como uma teia de aranha. Fio por fio. Um lugar onde o tempo parece não existir enquanto passado, presente e futuro se confundem, mas criam contorno. Nessa dança há permanência e memória. Transmiti-las em voz alta, com palavras vivas que encontram uma escuta verdadeira, é um acalanto para a vida.
“Para viver temos de nos narrar.” Foi com essa frase, da escritora espanhola Rosa Montero, que a psicanalista Luciana Saddi amarrou parte de seus pensamentos sobre a importância e a relação entre oralidade, permanência, memória e psicanálise.
“Nossa memória é a história que reescrevemos a cada dia”, disse a psicanalista durante o 3º encontro do curso Escuta, da SPBSP (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo).
“Sem essa imaginação que completa e reconstrói nosso passado, e que outorga ao caos da vida uma aparência de sentido, a existência seria enlouquecedora e insuportável. Puro ruído e fúria.”
Durante o evento, Luciana Saddi refletiu por quase 1h na aula especial “Ato puro e memória: a tradição da transmissão oral revisitada pela psicanálise”. Suas próprias lembranças, estudos e referências foram transformadas em versos para quem estava ali. Imersos nas palavras, escutando.
Falar para não esquecer
Logo no início, Saddi ressaltou a luta antimanicomial. Rememorar para não esquecer. Falar, repetir e relembrar.
Recentemente, a psicanalista comentou um estudo da psicopedagoga Leda Barone. “Era um trabalho muito bonito e amplo, que me tocou profundamente. No decorrer de sua exposição, Leda falava sobre hospícios e a arte produzida dentro deles como forma de resguardar a humanidade”, disse.
No momento em que a psicopedagoga mencionou o hospício, foi impossível para Saddi, que participou ativamente da luta antimanicomial, não se recordar dos absurdos cometidos contra pacientes na época.
“Verdadeiros horrores comparáveis a campos de concentração. E então surgiu, para mim, a questão da memória. Desde então, tenho refletido sobre a relação da memória com a psicanálise”, afirmou.
Palavra, poesia e memória
Luciana Saddi puxou o primeiro fio do novelo das suas reflexões no grego arcaico, antes da antiguidade, quando ainda não havia alfabeto e a palavra era entendida como uma “força divina”, capaz de ligar passado, presente e futuro.
“Quando se fala ‘maná’, o ‘maná’ está ali. Surge. É muito semelhante, com todas as diferenças, com o trabalho da análise. Quando os poetas desse período arcaico cantavam, eles falavam do fundamento da poesia. A poesia tem essa condição, ela consegue fazer uma espécie de epifania”, destacou a psicanalista.
“Mas o que que é uma epifania?”, questionou. “É um insight. Um ‘esclaro’, como chamou Guimarães Rosa.”
“A memória que surge em análise é fluída.”
De acordo com Saddi, é diante dessa “memória fluída” entre analista e paciente que o processo se transforma quase em uma forma de arte. Em uma poesia viva entre duas pessoas.
“Muitos pacientes dizem que uma das experiências mais interessantes da análise é simplesmente poder falar em voz alta. Isso altera completamente aquilo que antes era apenas pensado em silêncio, na própria cabeça. Quando algo é dito, alguma coisa se move, alguma coisa se modifica”, explicou.
“A análise é simples: duas pessoas em diálogo. Mas, apesar da simplicidade, esse encontro carrega a potência de uma enorme transformação. Sem alguém para escutar, essa ‘magia’ da psicanálise não aconteceria”, acrescentou.
“Chamo de magia por causa dessa capacidade de criar sentido que a análise proporciona. Há algo de mágico e especial na criação de sentido. Como psicanalistas, mergulhamos nesse reino dos sentidos em uma experiência criativa e profunda.”
Para Saddi, essa “busca incessante por novos sentidos na psicanálise” é impulsionada pela “qualidade poética” inerente ao processo, onde o “poema vivo” do paciente é constantemente alterado e ganha novas configurações.
Entre memória e ato puro
Falar em voz alta está intrínseco ao processo da psicanálise. No entanto, transcende para diversas áreas da vida. No passado, no presente e no futuro.
É também a história contada de avó para mãe, de mãe para filha, de filha para neta. A troca de uma conversa sincera entre duas pessoas que se amam. A oralidade dos povos originários da América do Sul e da África, que formam a base do que chamamos hoje de Brasil.
No campo da psicanálise, Luciana Saddi nos deixa dois exemplos em que a ausência de memória produz marcas profundas.
“Na demência, se imaginarmos a perda da memória, o esquecimento das palavras e a impossibilidade de compreender o que acontece ao redor, vivemos em uma espécie de angústia insuportável. É justamente aí que a permanência se torna fundamental: ela nos permite dar conta do que estamos vivendo e nos protege de cair em uma desrealização constante”, ressaltou.
“A memória e a permanência oferecem um certo acalanto à vida. Sem elas, estaríamos diante de uma experiência insuportável, semelhante ao que se observa em muitos quadros psicóticos, especialmente no começo. Freud descreve esse momento como o ‘desmoronamento do mundo’. Algo insuportável para qualquer um de nós.”
“Por isso, a memória e a permanência são tão importantes. E é também por isso que resistimos ao silenciamento e à invisibilidade.”
Segundo a psicanalista, esse silenciamento e invisibilidade levam ao ato puro. Ligados aos sintomas da atualidade – vícios, compulsões automutilações –, é sempre uma passagem imediata ao ato. Esse tipo de sintoma opera justamente o esquecimento.
“Trata-se de uma ação violenta, intensa, que prescinde de mediações. Não há fantasias, não há representações inconscientes, nem pensamentos conscientes. É apenas o ato em si: um alívio imediato da tensão e, ao mesmo tempo, uma substituição do pensamento”, explicou.
“Nesses quadros, o ato passa a dar sentido ao sujeito, e não mais o sujeito a atribuir sentido ao ato. Há, portanto, uma inversão. E, nesses estados ou momentos, torna-se impossível a construção da memória. É como viver em um espaço vazio, sem vínculos, sem ligações. O ato puro, assim, se apresenta como o oposto da memória”, finalizou.








