Arthur C. Brooks afirma no livro Cada vez mais forte (Intrínseca) que, após certa idade, a competição com o mundo dá lugar à criação a partir do aprendizado acumulado. A trajetória de vida, dos primeiros passos ao presente, ensina muito a quem sabe aprender, e a maturidade alcançada na “segunda metade” da vida pode desencadear uma mudança decisiva que abre novas formas de viver. Essa transformação não precisa aguardar um adoecimento físico ou mental para acontecer: é preciso observar os sinais.
A psicanalista e especialista em comportamento humano Gisele Hedler enfrentou uma experiência pessoal intensa ao vivenciar essa virada. Ela descreve essa mudança como dura e incisiva, longe de ser algo delicado.
Quando comandava a FSA (Faculdade de Saúde Avançada), Gisele foi diagnosticada com uma doença autoimune justamente no auge da carreira e da prosperidade financeira. Ela sabia que o estresse era o principal gatilho e que precisava desacelerar, mas a crença de que só ela dava conta das responsabilidades impedia qualquer pausa.
Reconheceu-se autossabotagem em relação à própria saúde — um paradoxo, já que o trabalho diário envolvia ajudar outros a perceberem suas limitações e prisões.
Recentemente, perdeu a função renal, passou por hemodiálise e, em seguida, por transplante. O rim veio de um doador falecido; essa doação foi descrita como um evento transformador que permitiu reconstruir a vida.
Com experiência clínica e administrativa, ela concluiu que qualquer pessoa é substituível em suas funções, e que isso não comprometeu a continuidade nem o crescimento da empresa.
O conselho para quem percebe a aproximação dessa fase é não aguardar até que o corpo dê sinais contundentes; quando isso acontece, muitas vezes já é tarde demais. A transição pode ser planejada e consciente, desde que haja coragem para reconhecer que a corrida incessante não vale a vida.
O caso de Gisele é extremo, mas os indícios dessa pressão aparecem de formas variadas quando a vida é encarada como competição permanente, seja por desgaste físico ou por esgotamento mental. Por trás do cansaço persistente está, muitas vezes, a transformação da performance em dependência.
Segundo a profissional, a dopamina associada à sensação de conquista é concreta: cumprir metas, receber elogios e acompanhar o aumento de curtidas nas redes sociais ativam o mesmo circuito de recompensa encontrado em outras dependências, exigindo doses cada vez maiores para manter o mesmo nível de prazer.
Com o tempo, corpo e psique pagam o preço desse estilo de vida. A performance costuma servir de mecanismo para não sentir, para evitar encarar o vazio, para escapar da pergunta fundamental: “Quem se é quando não há aplausos?”.
O amadurecimento surge ao perceber que uma identidade inteira foi construída sobre validação externa, transformando-se numa prisão; a busca por ser “bom o suficiente” revela-se uma armadilha sem fim.
Essa fase é marcada por exaustão, mas também pelo abandono da terceirização do próprio valor: deixa-se de perguntar “sou bom?” e passa-se a afirmar “eu sou”. Essa mudança assusta porque implica abrir mão do único sistema de validação conhecido, mas é onde reside a liberdade verdadeira.
E depois que a ficha cai?
Emocionalmente, essa etapa é uma descompressão interna, acompanhada de angústia por tocar nas estruturas que sustentavam a identidade de realizador, mas também de abertura para uma integridade mais profunda.
Surgem ações nascidas da experiência vivida, não da carência de reconhecimento: as escolhas passam a visar contribuição, sustentação e expansão com autenticidade, em vez de simplesmente vencer. A atividade cotidiana transforma-se em cuidado com aquilo que já foi cultivado.
Roberto Zimer, mestre em psicologia organizacional e professor da USP, observa que, ao deixar de enxergar o mundo apenas pela lente da performance, muda o filtro com que se interpreta a realidade.
Em vez de avaliar-se apenas pela entrega, a pessoa passa a perguntar se aquilo faz sentido pessoalmente e se está alinhado com suas convicções e valores, mudança que também orienta programas de suporte a profissionais experientes, como o SoulWork.
A régua de avaliação interna desloca-se: indicadores de performance dão espaço a critérios de sentido, como autenticidade, integridade, aprendizado, presença de qualidade e contribuição.
Essa visão não se restringe ao ambiente profissional; aplica-se igualmente a relacionamentos interpessoais e a outras dimensões da vida.
Zimer aponta que a maturidade pós-virada traz uma ambição saudável, fundada na contribuição e no serviço aos outros, usando dons e talentos para favorecer o crescimento alheio.
O efeito interno dessa transição é a sensação de paz, contentamento e coerência: a percepção de que o tempo é bem empregado e de que a vida tem um propósito alinhado aos próprios valores.
O próprio Zimer relata que sua virada pessoal ocorreu na graduação em Engenharia Mecânica, quando reconheceu falta de aptidão para a profissão, o que o levou a renunciar a planos e expectativas familiares para recomeçar com honestidade.
Esse momento foi difícil porque exigiu abrir mão de projetos construídos e das expectativas alheias, permitindo admitir a necessidade de recomeçar.
Na sequência, desenvolveu-se uma relação diferente com competição, sucesso e contribuição: o trabalho com pessoas tornou-se fonte de realização, e o apoio ao crescimento alheio passou a ser a verdadeira vocação, abrindo espaço para reconstruir a trajetória em bases mais autênticas.
Para quem sente esse chamado, a orientação é levar a intuição a sério, questionar crenças coletivas sobre sucesso e avançar com passos pequenos e concretos rumo ao que desperta entusiasmo, mesmo que isso implique desapontar expectativas externas para ser mais fiel a si mesmo.
Recomenda-se acolher a voz interior, permitir-se desconstruir modelos convencionais de sucesso e fazer movimentos gradativos na direção do que gera paixão e sentido.
Sustente a mudança
Alcançar essa virada produz alívio e inaugura um recomeço: ao perceber que a lógica da corrida e da aprovação não é viável, abre-se a necessidade de reorganizar a vida inteira; agenda, trabalho, relações e hábitos precisam ser reconfigurados.
Para que a nova maneira de estar no mundo não se limite a palavras, é necessário criar sustentação prática no cotidiano: estabelecer escolhas e limites que recordem a decisão de não competir incessantemente, mas de gerar possibilidades de vida mais saudáveis.
Segundo Gisele, o que mantém essa transição não é a imagem bonita projetada nas redes sociais, mas sim aquilo que mantém a pessoa desperta para sua própria existência.
Outra recomendação é priorizar descanso verdadeiro, não férias com conferência incessante de e-mails, mas a permissão para não produzir e a tolerância à angústia que esse vazio pode trazer, evitando o retorno automático ao piloto que preenche agendas para fugir do sentir.
Práticas que conectam ao corpo, como meditação, exercícios de respiração e movimento, ajudam a enfraquecer a competição mental, que prospera em pensamentos acelerados, comparações e projeções. Ao voltar ao corpo, essa dinâmica perde força.
Há ainda a necessidade de uma curadoria rigorosa do consumo de conteúdos: parar de seguir quem promove produtividade como virtude suprema e evitar materiais que instauram um estado constante de urgência.
Isso é venenoso; o que sustenta a mudança é clareza, não apenas disciplina. É preciso lembrar diariamente por que se optou por sair da corrida; caso contrário, o retorno é provável.








