De um tempo para cá a internet entrou em outro debate de opiniões: o caso Neil Gaiman. Não vou entrar em detalhes sobre as denúncias de abuso contra o autor, para quem quiser ler a matéria oficial da New York Magazine, é só clicar aqui. Acompanhei brevemente alguns criadores de conteúdo falando sobre o caso, mas não tive vontade de ler a matéria em si, já vivemos com muita violência no dia a dia, que buscar por mais me parece uma receita para o sofrimento. Ainda assim, li uma entrevista do Thiago Guimarães, ou OraThiago, na revista Capricho, pois acompanho o trabalho dele e não é a primeira vez que vejo ele comentando sobre se tem “como separar o autor da obra”.
Fica a indicação do vídeo que o OraThiago fez junto com o canal PlayGround Brasil: Dá pra separar o artista da obra? E se você gosta de cultura pop, pode maratonar o canal do OraThiago, vale a pena!
Mas o foco aqui não é sobre arte, artista, autor e se o cancelamento é válido. Cada um fala do que entende. Uma coisa que é pouco comentada e que acende um alerta vermelho é: fulano deve cair no esquecimento. Não passamos pano aqui, mas nenhum cancelamento foi prejudicial para autores e artistas denunciados de abusos ou coisas piores, ao contrário, cancelamento dá ibope.
Como uma bibliotecária, quando vejo que a “solução mágica” de alguns é esquecer, me lembra das bibliotecas que eram queimadas na Alemanha nazista. A comparação é horrível, porém a explicação é bem simples. Por que queimaram bibliotecas? Por que Ruy Barbosa mandou queimar os arquivos sobre os escravizados no Brasil em 1890? Por que a Disney não disponibiliza os filmes que fez no passado e que foram taxados como racistas? Essas ações são “queima de arquivos”, o que não é lembrado, é esquecido!
Você lembra que a Volkswagen fez um comercial com a Elis Regina, recriada por IA? Não vamos entrar na parte da inteligência artificial para reviver artistas, mas será que alguém do marketing não lembrou que a Elis Regina foi contra a ditadura militar no Brasil, e que a Volkswagen foi uma das apoiadoras da ditadura? Por que as pessoas não lembram do que aconteceu?
Esquecer ou apagar uma pessoa, uma história, um acontecimento ou o que for serve aos propósitos daqueles que se beneficiam do “apagamento”. Vamos responder às perguntas abertas pensando em quem se beneficia do esquecimento.
Por que a Alemanha nazista queimava bibliotecas? Queimar bibliotecas em guerras é algo mais comum do que parece. Um povo sem memória é um povo sem força, é um povo manipulável, sem conhecimento, sem referência. Então quem se beneficiava das queimas das bibliotecas era a própria Alemanha nazista. E não se iluda, “esquecer” é uma consequência natural de quem adora um discurso de ódio.
Por que Ruy Barbosa mandou queimar os arquivos sobre os escravizados no Brasil? Em 1888 era assinada a Lei Áurea, Ruy Barbosa encomendou a queima dos arquivos em 1890, e a queima foi feita em 1891. As datas são próximas porque no contexto da época a preocupação não era com o ex-escravizado, era para que os ex-proprietários de escravizados não pudessem pedir indenização após a abolição. Também acredita-se que foi um jeito de impedir que os ex-escravizados tivessem acesso às datas de suas compras, para não receberem recompensas por serem escravizados ilegalmente. Vai ter quem fale que era para acalmar os ânimos de uma ameaça reacionária, apesar de se contradizerem no argumento e ficar claro de que “meteram os pés pelas mãos” na justificativa. Resumindo, não queriam pagar nada para ex-escravizados e para ex-proprietários, e ainda tentaram (e tentam) justificar que o “esquecimento” foi benéfico para conter uma ameaça, ameaça que é tão reacionária quanto quem defende que “tem mais é que esquecer mesmo” ou que “na ditadura que era bom”.
Continuando as nossas perguntas. Por que a Disney não disponibiliza os filmes que fez no passado e que foram taxados como racistas? Vários clássicos da Disney trazem imagens racistas, contextos de superioridade branca e todo o contexto da época. Nem por isso passamos pano pra Disney, ao contrário, o foco deveria ser para além da “Disney reconhe[r] passado racista no catálogo do Disney+” (confira os filmes que a Disney reconheceu o passado racista aqui | matéria do CinePOP). No caso da Disney o que chama a atenção é o filme “A canção do Sul” de 1946, que foi removido do catálogo do Disney+ após várias críticas ao filme, a principal sendo sobre reprodução do racismo. Mesmo que a Disney coloque um aviso no início dos filmes de que tem estereótipos, representações negativas e qualquer outra coisa que critiquem, o intuito não vai ser educar para aprender com o passado, por isso é mais fácil simplesmente retirar o filme do catálogo, é como se fosse uma mancha no “legado Disney”. É esse “apagamento” tão benéfico para Disney que mantém sua história “limpa”, isso vai até a imagem de como o próprio Walt Disney é lembrado, como “gênio” e isso acende outro alerta vermelho.
Na entrevista da Capricho, o Thiago Guimarães fala exatamente disso: “A gente coloca todo valor de uma obra na mão de uma única pessoa, que é esse grande gênio e deixa de olhar pra fazer coletivo da arte”. Então será que quando alguém vai no cinema ver alguma animação da Disney, lembra que o fundador já foi acusado de ter simpatia pelo nazismo? (G1 – Walt Disney também tinha o seu lado negro) Ou talvez lembre que em 1992 as condições de trabalho na Disney eram inaceitáveis? Ou até que lembrem que recentemente, agora em 2023, trabalhadores de efeitos especiais da Disney se mobilizaram para formar sindicato? Não importa quanto tempo faz que o Walt Disney morreu, a Disney mantém o seus interesses iguais aos do início, e isso nada tem haver com representação, tem haver com lucrar o máximo que der, independente se agora tem ou não protagonistas negros ou LGBTs. Se dá lucro, eles fazem. E talvez o filme removido do catálogo não estava mais dando lucro e foi um apagamento providencial para a Disney continuar “limpinha”.
Agora o que tudo isso tem haver com o Neil Gaiman? Assim como a J. K. Rowling foi cancelada e pode até ter perdido vários fãs por causa das falas transfóbicas, ela e o Neil Gaiman continuaram ganhando dinheiro com suas histórias e franquias, porque gente pra consumir tem de monte. Você pode até se restringir e optar por não apoiar mais o trabalho desses autores, mas onde tem um que não consome, tem mais 10 que consomem e não se importam com o que os autores fazem ou deixam de fazer. É aqueles que acreditam que dá sim “para separar autor da obra”, só esquecem que isso é um “apagamento”. Talvez conscientemente ou inconscientemente, consomem e acabam por contribuir para que as coisas permanecem como estão. Ou seja, que a autora de Harry Potter fale o que quiser nas redes sociais sem punição, que Neil Gaiman não sofra nenhuma punição e possa continuar perpetrando mais violências por aí. Não é parte da solução e nem quer fazer parte do debate. Esse tipo de posicionamento, de “apagamento”, não ajuda nenhum lado, pode inclusive ajudar quem está sendo “cancelado”.
Então será que é só parar de consumir as obras? E para responder isso vou trazer um exemplo emblemático. Você sabia que o livro do Hitler, Mein Kamph, tem 81% de likes no Google books? É o texto nazista mais conhecido e popular já publicado. Qual é o problema de ler esse livro? O mesmo problema de ler qualquer coisa sem nenhum conhecimento e preparo, é por isso que muitas tiragens do Mein Kamph contam com notas de rodapés imensas. A arte no geral, vale para literatura também, conta sempre com contexto. É perfeitamente aceitável se você preferir não ler nada sobre esses autores, como o Neil Gaiman. Mas se for ler, você necessariamente precisa levar em conta o histórico de violências do autor, ou seja, não permita se esquecer do que o autor fez.