sábado, 21 de dezembro de 2024

Americanas não deixaria saudades como as da Mesbla do Passeio Público

É verdade que, se fechar as portas por causa da tal inconsistência contábil de bilhões de reais, a Americanas vai fazer uma certa falta na vidinha cotidiana de muita gente. Mas veja bem: fazer falta no dia-a-dia é bem diferente de deixar saudade.

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É preciso ter uma relação afetiva com uma empresa para ver um anúncio antigo ou passar por onde ela funcionava e desencavar o genuíno sentimento de “Ai, como era bom”. Não imagino ninguém pensando assim no futuro, lamentando o fim das operações da rede caso ela saia do mapa. Vamos todos comprar papel chamequinho, conjuntos de três calcinhas com uma obrigatoriamente bege e barras de chocolate em outro lugar. Tchau e bença.

Essa pontadinha no coração os cariocas sentem mesmo é quando avistam o relógio no topo do edifício art déco onde se instalou, dos anos 1950 até 1999, a mais querida das lojas de departamento do Rio de Janeiro: a Mesbla. Não qualquer Mesbla. Aquela.

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Ela, sim, deixou saudade. Era enorme, vendia de tudo e tinha em seu último andar um restaurante que me parecia muito chique, e onde as pessoas comiam sem a menor pressa, tendo à frente uma vista absurda da Baía de Guanabara. Lembro do meu pai pedindo escalopinho ao molho Marsala, que eu não tinha a menor ideia do que se tratava mas soava ótimo.

Isso foi no dia em que fomos comprar uma bicicleta (“Tem que ter cestinha”, ele disse) para dar de presente de aniversário para a minha mãe. Eu devia ter uns cinco anos e, no caminho, lembro ter passado por uma seção de carros. Eles vendiam carros também. E guitarras. E sutiãs. E bonecos Falcon. E papéis de carta para a gente colecionar.

Se não me falha a memória, além do restaurante havia um café em outro andar, onde comi a melhor coxinha da vida. Era, na verdade, uma coxona de galinha empanada, semelhante à famosa coxa-creme da Confeitaria Colombo. Gastronomia, como se vê, era coisa séria naquela Mesbla, onde segundo seus próprios vendedores, “só não vendia caixão”.

Parece verdade. As xícaras onde bebíamos leite com Toddy em casa, o primeiro relógio de pulso (do Mickey Mouse, com os bracinhos funcionando como ponteiros), a primeira prancha de bodyboard e algumas outras “primeiras” coisas da minha vida foram compradas ali e me dadas de presente pelos meus pais, tios, tias e padrinhos. Lá em casa, típica família de classe média, embaixo da árvore de Natal era quase impossível não ter pelo menos um embrulho verde e/ou vermelho da Mesbla. Um deles uma vez trazia um par de tênis Bubble Gummers.

Ele era uma graça, com personagens desenhados nas laterais e cheirinho de chiclete. Achei que era para mim, mas não. Por causa dos pés chatos, eu só podia usar botas ortopédicas e, por alguns minutos, achei que minha alforria estava ali, naquela caixa que exalava tutti-frutti. Que nada. O Bubble Gummers era para o meu irmão, eu continuaria com as botas, sempre com elas, até os seis anos de idade. Um trauminha ligado à Mesbla, de que me lembrei agora. Foi mais forte que eu.

Ícone do centro da cidade, o relógio no alto do prédio em frente ao Passeio Público continua lá e, até hoje, quase 25 anos depois de a loja fechar, muita gente ainda o chama de “o relógio da Mesbla”. Pudera: em seus áureos tempos, quando tinha ao seu lado o logotipo da empresa em neon vermelho, era ele que servia de parâmetro para quem passava em frente ao edifício.

A hora certa era a que ele marcasse, e cariocas tinham o hábito de ajustar o próprio relógio olhando para a torre da Mesbla, mais confiável que o “hora certa”, o número 130 da companhia telefônica. Como se não bastasse, o relógio por bons longos anos tocou a Ave Maria pontualmente às 18h e ainda tinha bandeiras ao seu lado que, numa espécie de código que só os mais entendidos conseguiam compreender, anunciavam a previsão do tempo. Uma coisa impressionante.

A Mesbla talvez tenha cativado especialmente os cariocas também porque ajudou a movimentar a vida cultural e esportiva da cidade ao investir em eventos bacanas. Patrocinou shows do Legião Urbana; fez parceria com o primeiro Rock in Rio, em 1985 (uma camiseta oficial do festival comprada lá dava direito a uma entrada para um dos dias de shows); lançou a Alternativa, etiqueta própria de roupas para jovens, e com ela trouxe para as areias da Barra da Tijuca uma das etapas brasileiras do circuito mundial de surfe, em 1992. Isso quando o esporte estava longe de ser esse fenômeno de mídia que movimenta fortunas de empresas nacionais e internacionais de hoje em dia.

De olho na força de seu nome, dois empresários anunciaram, em maio de 2022, que trariam a marca de volta. Agora como um site de marketplace, com mais de 250 mil produtos, em centenas de categorias diferentes. “Seja um Mesbler”, anuncia a página que está no ar, tentando ser “disruptiva” ao usar a linguagem dos millenials que ainda nem eram nascidos quando a Mesbla era a Mesbla. Se o ecommerce deu certo, não sei. Tomara que sim. A ideia foi boa.

Mas a verdade é que cada vez que passo pela Rua do Passeio trato de, por força do hábito, ajustar meu relógio ao horário indicado sobre o edifício, onde até dezembro passado funcionou uma filial da… Americanas. Ironicamente, foi a empresa, hoje respirando por aparelhos, que ocupou por uns bons anos (e sem o menor capricho) alguns andares de um lugar tão marcante para os cariocas. Hoje em dia a Mesbla, aquela, é só um retrato em jornais e sites na internet. Mas como dói.

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