- A origem, a trajetória e o estabelecimento do gênero true crime como fenômeno cultural.
- Os dilemas éticos e emocionais suscitados pela transformação de tragédias em entretenimento.
- Os critérios que separam o sensacionalismo de uma narrativa responsável, comprometida com os fatos.
Desde os panfletos europeus do século XVI até os documentários mais vistos da atualidade, o true crime acompanha a atração por relatos do lado obscuro da realidade. Crimes, enigmas e processos judiciais sempre chamaram a atenção do público e, com a expansão das plataformas digitais, essa curiosidade ganhou novas formas de difusão.
Atualmente, produções de true crime atraem audiências milionárias em podcasts, séries e vídeos no YouTube. Mas, junto com a popularidade, surgem questionamentos: quais são as consequências quando a dor alheia vira produto de consumo?
De panfletos a podcasts: a história de um fascínio
Relatos criminais baseados em fatos reais antecedem a era da internet. No século XVI, panfletos comercializados em feiras britânicas descreviam homicídios com detalhes fortes. No século XIX, os broadsides, canções e folhetos soltos, narravam crimes e execuções públicas, configurando uma forma primitiva de jornalismo criminal e o início de um fenômeno cultural.
No século XX, o formato ganhou sofisticação com obras como “A Sangue Frio” (1953), de Truman Capote, que converteu uma investigação real em literatura. Décadas depois, programas televisivos consolidaram o modelo audiovisual.
A verdadeira expansão ocorreu nos anos 2000. O podcast “Serial”, em 2014, e a série “Making a Murderer”, na Netflix, demonstraram como histórias reais podem ser contadas com profundidade narrativa. O gênero passou a integrar a cultura pop: fácil de produzir, viciante de consumir e amplamente compartilhável.
O problema: quando a dor vira produto
O sucesso do gênero também expôs seus conflitos éticos. Ao converter tragédias em conteúdo, muitas obras reduzem pessoas reais a figuras de suspense, reencenando vítimas, explorando gravações e fazendo familiares reviverem traumas sem consentimento.
Esse comportamento alimenta o que especialistas denominam “pornografia do trauma”: a transformação da violência em espetáculo. Há ainda impactos psicológicos palpáveis: estudos apontam que a exposição excessiva a esse tipo de material eleva níveis de ansiedade e a sensação de insegurança, especialmente entre mulheres, que compõem a maior parte do público dessas produções.
O episódio “Loch Henry”, de “Black Mirror” (temporada 6, episódio 2), ilustra ficcionalmente esse impasse moral. Dois cineastas partem para filmar um documentário sobre natureza e descobrem uma tragédia oculta na cidade natal de um deles. O projeto, inicialmente leve, transforma-se num espetáculo sobre crime real, impulsionado por cobertura midiática, prêmios e lucro, enquanto as pessoas envolvidas passam a ser mercadorias. O episódio reflete com precisão nosso tempo: ao desejar avidamente esse tipo de entretenimento, consome-se a tragédia alheia sem perceber que vidas são transformadas em produto.
Quando o gênero pode ser bom
Apesar das críticas, o true crime pode exercer função social relevante quando conduzido com ética e finalidade claras.
No Brasil, um exemplo notório é o podcast “Projeto Humanos – O Caso Evandro”, criado por Ivan Mizanzuk. A série revisitou um crime de 1992 que estava praticamente esquecido e trouxe à luz gravações de interrogatórios que indicavam tortura, além de revelar falhas graves nas apurações.
O trabalho reacendeu o debate público, pautou veículos de imprensa e colaborou com revisões judiciais que culminaram na absolvição de réus condenados injustamente. Mais do que audiência, o podcast proporcionou transparência, contexto e um serviço público raro, convertendo indignação em busca por justiça.
Outro exemplo significativo é a série “The Jinx”, da HBO, que reexaminou a trajetória do milionário Robert Durst, herdeiro de uma das famílias mais ricas de Nova York. O documentário abordou as acusações que o vinculavam a três episódios: o desaparecimento da esposa Kathie Durst, em 1982; o assassinato da amiga Susan Berman, em 2000; e a morte de um vizinho no Texas, em 2001. A produção reuniu depoimentos, arquivos e entrevistas com Durst, compondo um retrato inquietante de um homem que parecia driblar a lei por décadas.
No episódio final, Durst foi gravado inadvertidamente com o microfone ativo, no banheiro, murmurando algo que soou como uma confissão: “O que foi que eu fiz? Matei todos eles, claro.” Pouco antes da exibição do episódio, Durst foi detido pelas autoridades norte-americanas e, anos depois, em 2021, foi condenado pelo assassinato de Susan Berman.
O caso teve impacto inegável, mas também suscitou debate ético sobre os limites entre jornalismo, narrativa e espetáculo. Esses exemplos mostram que, quando guiado pelo compromisso com a verdade e o respeito às pessoas envolvidas, o true crime pode transcender o entretenimento e atuar como instrumento de justiça, memória e reflexão social.
Consumo e produção responsáveis
Consumir relatos de crimes reais exige postura consciente. Antes de começar, é importante avaliar se a obra informa ou apenas diverte, se trata as vítimas com decoro e se oferece contexto. Optar por produções que prezam pela apuração e evitam violência gratuita é recomendável. Também convém lembrar que a exposição contínua a esse tipo de narrativa pode comprometer o bem-estar emocional; portanto, saber interromper o consumo faz parte de uma postura responsável.
Para quem cria esse conteúdo, o cuidado precisa ser ainda mais rigoroso. Transparência sobre fontes, sensibilidade no trato com vítimas e atenção para não transformar tragédias em espetáculo são princípios fundamentais. Narrar um fato real é um dever de responsabilidade: o bom true crime informa, instiga reflexão e contribui para a justiça, não apenas para a audiência.








