As estações mudaram e, com elas, tudo se transformou. O canto dos pássaros ficou mais vivo e as flores emergem sem receio. A primavera altera a energia, o clima e a paisagem. Depois do recolhimento do inverno, o cenário retoma cores mais intensas. As pessoas também sentem essas mudanças. É importante lembrar que os seres humanos fazem parte dos ciclos naturais.
Independentemente da rotina, podem surgir períodos em que a energia interna se esvai e a vitalidade parece estagnar. Nesses momentos, a primavera convida ao desabrochar interior e exterior com coragem. Há sempre um ciclo natural que incentiva o despertar e a busca por renovação.
Despertar da vitalidade interna
Segundo a professora de meditação e especialista em Ayurveda, Fernanda Ester Machado, é fundamental entender que a primavera corresponde à qualidade Kapha, associada aos elementos terra e água.
Ao sintonizar-se com essa força, não se demonstra fraqueza, mas sabedoria profunda: confiar no outro e permitir crescimento a partir do encontro, afirma a especialista.
Assim como a natureza se abre em flores, as pessoas são chamadas a despertar e a iniciar novos ciclos, atravessando fases de renovação, crescimento e vigor.
Fernanda enfatiza que a estação estimula a incorporação de práticas meditativas na rotina para acalmar a mente, promover clareza e permitir que a energia renovadora se manifeste de forma equilibrada.
Aliadas a uma alimentação que privilegia sabores picantes, amargos e adstringentes, essas práticas ajudam a viver a primavera com mais leveza, entusiasmo e energia para florescer com a estação, acrescenta a especialista.
No entanto, a mesma qualidade Kapha pode aumentar a umidade no organismo, gerar sensação de peso, sonolência e digestão lenta; por isso é recomendado estimular o movimento.
Para reforçar corpo e mente na passagem das estações, é essencial alinhar-se ao ritmo natural. Isso inclui a prática de exercícios aeróbicos que ativem a circulação e o calor interno, além de rotinas meditativas que acalmem a mente, promovam clareza e permitam que a renovação surja de forma balanceada.
No Ayurveda, harmonizar os doshas na primavera significa acompanhar a expansão da energia natural, respeitando não só o ciclo circadiano, mas também sincronizando corpo, mente e emoções.
A tradição ayurvédica salienta que procurar esse equilíbrio não é apenas um ato intuitivo, mas um caminho para o bem-estar contínuo. Práticas emocionais como gratidão, escrita terapêutica e afirmações positivas fortalecem a estabilidade mental e afetiva. Fernanda destaca ainda que a primavera é propícia para a desintoxicação, pois o dosha Kapha tende a se acumular durante o inverno.
Isso pode começar de modo simples: despertar cedo, antes do sol, com meditação ou respiração consciente para aliviar o peso mental. Na alimentação, priorizar sabores picantes, amargos e adstringentes, cuidar do Agni (fogo digestivo) e adotar um leve detox emocional, refletindo sobre emoções estagnadas e liberando o que sobrecarrega.
Sabedoria ancestral de um novo ciclo
A conexão com a primavera precisa ser genuína, entendendo que a renovação não ocorre isoladamente, mas de forma coletiva. Reconhecer a condição de pertencer a uma rede de relações constitui, por si só, um suporte para o crescimento mútuo.
A socióloga e pesquisadora indígena Silvia Muiramomi reforça que os ciclos das estações se vinculam às transformações coletivas e individuais. Entre os Guarani Mbya, por exemplo, a primavera corresponde ao Ara Pyau, o ciclo novo, quando a natureza, os projetos e a fertilidade florescem.
Não existe separação entre a natureza e os seres vivos; todos participam dessa “hiperconexão” presente nos níveis espiritual, físico e mental, explica a pesquisadora.
Nas áreas urbanas, a percepção do tempo de plantar, cuidar e ver o crescimento frequentemente se perde. O desabrochar natural deveria inspirar uma reavaliação da vida na cidade. Um aprendizado essencial é que, para abrir espaço ao novo, é preciso deixar partir o que já não serve.
Falar sobre florescer e a dinâmica primaveril é também reconhecer a transitoriedade da flor, que antecede o fruto e as sementes, compreendendo que os ciclos que se encerram abrem caminho para a renovação de energias.
A primavera convida à contemplação dos frutos, ao início de projetos e à celebração da vida que se refaz; retomar a capacidade de apreciar a beleza das transformações, lição valorizada pelos povos indígenas, é algo a ser reaprendido.
Contemplar a beleza
O cuidado permanente depende de pequenas ações cotidianas que, somadas, cultivam uma cultura de acolhimento. Para quem vive em ambientes urbanos desconectados da natureza, práticas simples ajudam a resgatar raízes ancestrais e a evitar a percepção do solo apenas como mercadoria.
A pesquisadora alerta que a emergência climática leva a entender a primavera não como um evento isolado, mas sim como consequência da preservação da biodiversidade. Observar, compreender e proteger a natureza, desde uma abelha sem ferrão até uma onça, assegura a reprodução e a regeneração dos ciclos.
No cotidiano urbano, o bem-estar emocional e a ligação com os ritmos naturais devem ser temas discutidos rotineiramente como forma de prevenção e conscientização. O Ayurveda recomenda práticas que envolvem os sentidos e o cuidado do ambiente, como caminhadas em parques, plantas dentro de casa ou visualizações da natureza em meditação, despertando a consciência de que a humanidade integra o ciclo natural.
Quando as raízes ancestrais — histórias, saberes e culturas — são apagadas, perde-se parte essencial da experiência humana ligada aos territórios originários e aos conhecimentos fundamentais para o bem viver. Sem memória, um povo deixa de se reconhecer na terra que o nutre e passa a tratar tudo como mercadoria; a memória é o fio que conduz com segurança rumo ao futuro, ressalta a socióloga.
A sociedade precisa repensar modos de produção e geração de riquezas inspirando-se na natureza, que não gera resíduos: tudo o que se produz se recicla e se transforma em benefício coletivo.








