Poucos dias depois de Israel sofrer uma derrota no Conselho de Segurança da ONU, que condenou o ataque ao Qatar, e de uma nova frustração na Assembleia-Geral, em que 142 países aprovaram uma declaração a favor da criação do Estado da Palestina, e quando delegações árabes e muçulmanas se preparavam para reunir em Doha, no Qatar, o secretário de Estado norte-americano Marco Rubio deslocou-se apressadamente a Israel. A mensagem transmitida foi clara: aconteça o que acontecer, Estados Unidos e Israel permanecem alinhados. Mesmo face aos interesses de outros aliados dos EUA, Washington prioriza Israel. Nada de novo. Mais tarde, Donald Trump apresentou uma versão aparentemente contraditória: alertou que Israel deve “ter muito cuidado”, destacando que “o Qatar tem sido um grande aliado dos Estados Unidos. Muitas pessoas não sabem disso”. Trump assegurou de forma categórica que Israel não atacará novamente o Qatar, uma garantia vinda da Sala Oval poucas horas depois de o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, ter afirmado o oposto (ao lado de Marco Rubio, que não o contestou), sem afastar a possibilidade de novos ataques contra líderes do Hamas “onde quer que estejam”, chegando mesmo a recordar como Israel eliminou os responsáveis pelo atentado contra a comitiva israelita nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972.
Benjamin Netanyahu não se afasta um centímetro da linha beligerante e supremacista que alimenta a continuação do conflito na Faixa de Gaza, desdenhando pedidos de velhos aliados, ignorando decisões da Justiça Internacional e violando o Direito Internacional — uma postura que parece ter a aprovação de Donald Trump. Israel age livremente, nos termos e no momento que determina. E isso é apelidado de democracia.
Cimeira de Doha
Em Doha, representantes da Liga Árabe e da Organização para a Cooperação Islâmica reuniram-se com caráter de urgência. Ressurgiu um discurso crítico a Israel que vinha esmorecendo (à exceção do Irão) desde que alguns países árabes e muçulmanos assinaram os Acordos de Abraão e outros, como a Arábia Saudita, estavam prestes a fazê-lo — pelo menos até o ataque do Hamas a 7 de outubro de 2023. Trata-se de uma alteração profunda no posicionamento regional.
O ataque ao Qatar desencadeou sinais de alarme nas capitais árabes, que até agora privilegiavam negócios bilionários com Israel e com os Estados Unidos, demonstrando menos empenho pela causa palestiniana ou pela crise na Faixa de Gaza, apesar da retórica verbal. Há momentos em que os governos não podem perder a face perante as suas populações.
Além disso, ficou claro algo simples: a determinação de Israel prevalece sobre a suposta proteção dispensada pelos aliados norte-americanos. Ainda não se confirmou se os Estados Unidos foram avisados com antecedência — Israel assumiu responsabilidade total pelo ataque ao Qatar — mas os mísseis realmente caíram em Doha e os EUA não os impediram. Podem voltar a cair, já que Netanyahu afirma essa possibilidade, apesar das negações de Donald Trump. As capitais árabes perceberam também que qualquer uma delas pode enfrentar situação semelhante, caso Israel assim o decida.
Netanyahu juntou o mundo árabe e persa
Com o ataque ao Qatar, Netanyahu acabou por reunir, curiosamente, árabes e persas em torno de um mesmo propósito. Não é um feito menor, considerando que o Irão é o principal adversário de Israel e que um dos objetivos dos Acordos de Abraão era isolar Teerão. A iniciativa não correu bem para Netanyahu, além de os líderes do Hamas terem sobrevivido ao ataque.
O presidente do Irão declarou que nenhum país árabe ou muçulmano está seguro contra ataques da “entidade sionista”; o Emir do Qatar exigiu medidas concretas e enérgicas em resposta ao ataque israelita; e o presidente do Egito alertou que a ofensiva israelita cria barreiras a qualquer possibilidade de acordos de paz com Israel e pode até pôr fim aos que já existem, como os tratados de paz do Egito e da Jordânia.
Declaração de Doha
Da cimeira de Doha não saíram medidas muito concretas. A retórica é previsível, mas isso não impede que as palavras venham a ter efeitos práticos. No comunicado final, porém, existem expressões contundentes: menciona-se “práticas agressivas contínuas de Israel, incluindo crimes de genocídio, limpeza étnica, fome e cerco, bem como atividades de assentamento e políticas expansionistas, que minam as perspetivas de paz e coexistência pacífica na região”. Os países reunidos em Doha acusam Israel de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, afirmam que a paz regional não pode significar aceitar tudo o que Israel pretende, estabelecem critérios para futuros acordos, exigem o fim da ocupação israelita de todos os territórios árabes (Líbano, Síria, Cisjordânia e Gaza) e reafirmam “o conceito de segurança coletiva e destino compartilhado dos Estados Árabes e Islâmicos, a necessidade de unidade para enfrentar desafios e ameaças comuns e a importância de começar a implementar os mecanismos de execução necessários”.
Também se deixou uma advertência: qualquer decisão de Israel de anexar território palestiniano equivalerá à anulação de todos os esforços para alcançar uma paz justa e abrangente na região.
A Organização de Cooperação Islâmica propõe avaliar em que medida Israel pode continuar a fazer parte da ONU, tendo em conta “claras violações das condições de filiação e o seu persistente desrespeito pelas resoluções da ONU”. O objetivo anunciado é coordenar esforços para suspender a filiação de Israel nas Nações Unidas.
Os Estados presentes em Doha pedem ainda a imposição de sanções, incluindo a suspensão do fornecimento, da transferência ou do trânsito de armas, munições e materiais militares; sugerem a revisão das relações diplomáticas e económicas e reclamam o desencadeamento de processos legais contra Israel.
Esta é a síntese de um extenso comunicado de 25 pontos. Algumas das exigências poderão ser aplicadas imediatamente pelos próprios países signatários, mas será necessário aguardar para saber se a retórica se converterá, desta vez, em ações concretas.
Qatar
O Qatar é um caso singular: até recentemente quase foi tratado como um pária entre as monarquias do Golfo, protagonizando entre 2017 e 2021 uma crise que incluiu encerramento de fronteiras e cerco económico. A sua boa relação com o Irão, a proximidade com a Irmandade Muçulmana e as acusações de apoio ao terrorismo parecem hoje ultrapassadas. O Qatar é também um aliado significativo dos Estados Unidos, tendo oferecido recentemente ao presidente norte-americano um Boeing 747 avaliado em 350 milhões de euros para servir como avião presidencial. As relações comerciais entre os dois países, incluindo encomendas à Boeing e aquisições de equipamento militar, representam dezenas de milhares de milhões de dólares, algo que atrai a atenção de Donald Trump. Soma-se ainda a presença militar norte-americana no território qatari.
Do que não se falou
Dentro da crise desencadeada pelo ataque israelita ao Qatar parece existir uma arma estratégica em reserva: o petróleo. Embora a declaração final não a mencione, o preço do petróleo — que países árabes, e especialmente os do Golfo, podem influenciar — não será indiferente se Israel mantiver a agressão e a comunidade internacional continuar sem impor sanções a Telavive.
Paralelamente, discutiu-se a reativação de uma força militar árabe de resposta rápida em caso de ataque a um país árabe. A ideia não é nova e até agora não vingou, mas o jornal Al-Quds Al-Arabi, sediado em Londres, noticiou que o presidente egípcio Abdel Fattah al-Sisi trabalhou nessa proposta nos últimos dias. Em Israel, a hipótese foi usada para manchetes que depreciam as lideranças árabes, como exemplificou o israelnationalnews.com: “O Mito de um Exército Árabe Conjunto: Ditadores focam-se na sobrevivência, não na defesa”.
Para o mundo árabe em geral, o problema é que esse jornal israelita tem algum fundo de verdade: historicamente, tem sido difícil concretizar iniciativas militares conjuntas. Resta saber se o ataque ao Qatar mudará essa dinâmica, superando as habituais dificuldades de coordenação e reunindo vontades e visões diversas sobre o futuro da região.
Apesar de tudo, Israel encontra-se mais isolado. A intenção de aproximar-se dos países vizinhos resultou mal ao atacar o Qatar, produzindo maior hostilidade. O “novo” Médio Oriente que Trump e Netanyahu tanto desejam e proclamam terá de aguardar. A questão palestiniana depende em grande parte desse desígnio.








