5 de dezembro de 2025
sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Brics transforma-se em um bloco político que redesenha a ordem global

Em 2001, o economista Jim O’Neill, então ligado ao banco Goldman Sachs, divulgou um estudo que mudou a percepção sobre o peso econômico global. No relatório, O’Neill destacou quatro potências em ascensão: Brasil, Rússia, Índia e China, reunidas na sigla concisa e impactante BRIC, pensada para atrair investidores e sem objetivo inicial de diretriz política.

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Contudo, o rótulo acadêmico rapidamente ganhou vida própria. Os governos, percebendo o simbolismo da sigla, passaram a se reconhecer como integrantes de um movimento comum e, em 2006, na margem da Assembleia Geral da ONU, seus chanceleres realizaram o primeiro encontro oficial do grupo.

O percurso rumo a uma articulação mais institucionalizada ainda precisava ser traçado. Em 2009, os chefes de Estado das quatro nações reuniram-se em Ecaterimburgo, na Rússia, numa reunião que simbolizou o início da institucionalização do bloco. No ano seguinte, a inclusão da África do Sul elevou o grupo para cinco membros, reforçando a ideia de que o BRICS havia deixado de ser mera coincidência estatística e se tornara o embrião de um projeto político com ambições globais.

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O bloco emergiu num momento de desgaste das estruturas de governança internacional herdadas do pós‑Segunda Guerra, em especial das instituições de Bretton Woods, criadas em 1944 para fomentar a cooperação econômica mundial. No centro desse sistema estão o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. O FMI combina assistência financeira e aconselhamento para preservar a estabilidade monetária global; o Banco Mundial concentra‑se na redução da pobreza e no financiamento de infraestrutura em países em desenvolvimento.

Paulo Nogueira Jr., que representou o Brasil e outras nações como diretor executivo do FMI por oito anos em Washington, conhece de perto a dificuldade de reformar esse arranjo. O economista participou do Curso de Formação BRICS e afirma que as instituições mostravam grande resistência à adaptação. Mesmo com avanços desde a crise global de 2008, ele considera que as mudanças foram tímidas diante das demandas do século XXI.

Para os Estados Unidos, a legitimidade e a eficácia do FMI precisavam passar por uma reforma estrutural que ajustasse a governança do fundo à nova configuração econômica mundial. Países emergentes e em desenvolvimento, especialmente na Ásia, cresciam rapidamente e exigiam maior representatividade. Assim, a reforma do FMI virou bandeira central desses países, e o BRICS pressionou por uma distribuição de votos que refletisse o novo mapa econômico.

A contestação da ordem internacional liderada pelos EUA aparece nas análises sobre a origem do BRICS e na discussão de uma nova ordem mundial. O professor Mauricio Metri, da UFRJ, destacou em debate na ENFF que, desde o fim da Guerra Fria, a hegemonia ocidental se sustentou não apenas por valores políticos e econômicos, mas também pelo expansionismo militar e pela supremacia do dólar.

“Os cinco diretores executivos dos BRICS no FMI começaram a se reunir com muito mais frequência, buscando coordenar posições sobre os temas em pauta na diretoria e as nossas iniciativas”, relata Paulo Nogueira Jr. em seu livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém. Segundo ele, cada conquista do grupo exigia preparação detalhada e articulação, mostrando que o BRICS não era só um conceito econômico, mas um movimento estratégico de negociação internacional.

Fortaleza, 2014: uma nova perspectiva

A cooperação entre os BRICS deu um passo concreto em 2014, na cúpula realizada em Fortaleza, no Brasil. Ali foi lançado o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), destinado a financiar projetos de infraestrutura e promover desenvolvimento sustentável. Paralelamente, foi criado o Arranjo Contingente de Reservas (ACR), um mecanismo de apoio mútuo para enfrentar instabilidades cambiais.

Segundo Paulo Nogueira Jr., essas iniciativas significaram um avanço rumo a um mundo mais multipolar. Apesar das diferenças econômicas, políticas e históricas, os onze países que hoje integram o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã) compartilham traços comuns: são economias de grande porte territorial, populacional e econômico, com capacidade de atuar com relativa autonomia: algo incomum entre outras nações em desenvolvimento.

No governo Dilma, a cooperação com os demais BRICS tornou‑se um eixo central da política externa brasileira, culminando na cúpula de Fortaleza, em julho de 2014, quando foram assinados os acordos que criaram o ACR e o NBD. Esses dois mecanismos complementam as instituições multilaterais de Washington e podem cooperar com elas, mas foram concebidos para autoadministração e atuação independente, recorda Nogueira Jr.

O encontro em Brasília também trouxe um fato inédito: a reunião dos líderes dos BRICS com 11 presidentes da União de Nações Sul‑Americanas (Unasul). Esse momento seguiu ao anúncio do NBD, dotado inicialmente de capital de US$ 50 bilhões, com o objetivo de financiar infraestrutura em economias emergentes e ampliar sua atuação além dos países‑membros originais.

Ao longo do tempo, a atuação do BRICS se ampliou. Além das cúpulas anuais, surgiram múltiplos fóruns ministeriais e encontros temáticos, expandindo a agenda para comércio, inovação tecnológica, segurança, saúde e meio ambiente. Num cenário em que se percebia um vácuo diplomático na política externa dos EUA durante a gestão Obama, os BRICS procuraram consolidar novas bases de apoio político e econômico em regiões historicamente influenciadas pelos norte‑americanos.

Expansão pelo mundo

Entre os instrumentos simbólicos e práticos dessa cooperação, o fundo de reservas do BRICS, concebido como mecanismo de solidariedade preventiva, constitui uma ferramenta relevante para momentos de tensão entre os membros. Com reservas combinadas que excedem US$ 4 trilhões, os onze integrantes dispõem de uma base financeira forte para apoiar essa iniciativa, reforçando a capacidade de enfrentar crises de modo conjunto e autônomo.

Em 1º de janeiro de 2024, Egito, Etiópia, Irã e Emirados Árabes Unidos ingressaram formalmente no BRICS, num processo de expansão gradual que vinha sendo debatido. Em 6 de janeiro de 2025, a Indonésia também tornou‑se membro, consolidando a ampliação do grupo e reforçando a estratégia de ampliar sua representatividade global. Além de admitir novos membros, o bloco passou a convidar países como observadores em suas cúpulas, demonstrando intenção de estender sua influência geopolítica e econômica.

Esse movimento continua a refletir a busca por maior representatividade internacional e por alternativas à ordem dominada pelas potências ocidentais, embora não elimine desafios internos. A China permanece como a maior potência no bloco, suscitando críticas sobre assimetrias comerciais e o risco de reprimarização das economias parceiras.

A principal dificuldade interna de coordenação dos BRICS é o peso desproporcional da China quando comparado ao dos demais países. Os chineses têm porte e recursos para, em alguns casos, enxergarem vantagens em negociar separadamente com os americanos e os europeus. Entendimentos entre Brasil, Rússia e Índia funcionam às vezes como contrapeso à inclinação da China de atuar em faixa própria.

Paulo Nogueira Jr., O Brasil não cabe no quintal dos outros (Ed. Leya, 2019).

O contraponto à hegemonia dos EUA

“O que o BRICS têm em comum? Para além de todas as diferenças, fundamentalmente o seguinte: são países de grande dimensão econômica, geográfica e populacional.” Essas palavras de Paulo Nogueira Jr. sintetizam o papel do grupo, que, apesar das diversidades, compartilha atributos que moldam sua presença internacional.

Metri destacou que o restante do planeta arca com o custo da projeção global dos EUA, pois o dólar exerce papel dominante e a capacidade americana de se financiar está ligada às suas políticas externas. “Para os EUA, o endividamento não é sinal de fraqueza como em outras nações, mas expressão de poder.” Segundo o professor, essa lógica econômica conecta‑se com conflitos atuais, como os pacotes bilionários de apoio à Ucrânia, Taiwan e Israel, e explica como decisões de gasto americano repercutem em crises como a de Gaza.

No campo da soberania, o BRICS preconiza o respeito à autodeterminação dos Estados‑membros. Antônio Freitas, Subsecretário de Finanças Internacionais e Cooperação Econômica do Ministério da Fazenda, ressaltou que, mesmo com orientações políticas distintas, inclusive no Brasil, o grupo sustenta o princípio da soberania como valor central.

Uma das prioridades do Brasil foi promover uma melhor integração dos novos países membros do BRICS. Isso incluiu a definição de mecanismos para a rotação das presidências e a criação de diversos itens que contribuem para uma institucionalidade ainda incipiente do grupo. Embora essa institucionalidade possa ser aprimorada, é importante reconhecer que existem diferentes visões dentro do BRICS, inclusive sobre o que o grupo pode se tornar.

Antônio Freitas

Esses esforços também evidenciam tensões comerciais entre os EUA e os países do BRICS, que ganharam novo capítulo durante o segundo mandato do presidente Donald Trump, quando foram aplicadas tarifas elevadas sobre produtos brasileiros e de outras nações do bloco na mesma semana em que o BRICS se reuniu no Rio de Janeiro, em julho deste ano.

As medidas deixaram explícita a resistência americana ao avanço econômico desses países, reforçando a noção de que a ordem internacional tradicional vinha sendo desafiada não só diplomaticamente, mas também nas práticas comerciais. Para os BRICS, as tarifas representaram um lembrete da necessidade de buscar alternativas que reduzam a dependência das políticas e do mercado norte‑americano.

Esse cenário acentuou a importância da cooperação financeira e política interna ao grupo, fortalecendo instrumentos já existentes como o Novo Banco de Desenvolvimento e o fundo comum de reservas. Ao criar mecanismos próprios para enfrentar crises e fomentar investimentos, o BRICS vem lapidando uma rede de apoio que atua como contraponto às ações protecionistas externas. As tarifas impostas por Trump, portanto, evidenciaram fragilidades do sistema atual e aceleraram a busca do bloco por maior autonomia e influência global.

Uma demonstração recente foi a nota divulgada na segunda‑feira (8 de setembro), por iniciativa do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no exercício da presidência do agrupamento. O comunicado tratou de uma Reunião Virtual de Líderes em que o grupo “reafirmou seu compromisso com a preservação e o fortalecimento do multilateralismo, bem como com a reforma das instituições internacionais.” Houve também um “balanço abrangente da atual situação mundial” e consenso sobre a necessidade de caminhar para uma ordem internacional mais justa, equilibrada e inclusiva, capaz de refletir as transformações em curso e responder melhor às demandas do Sul Global.

Segundo a nota oficial da Presidência do Brasil, a reunião permitiu troca de visões sobre como enfrentar “os riscos associados ao recrudescimento de medidas unilaterais, inclusive no comércio internacional,” além de debater modos de ampliar os “mecanismos de solidariedade, coordenação e comércio entre os países do BRICS.” O documento observou ainda que o encontro serviu de preparação para eventos importantes como a 80ª Assembleia Geral da ONU, a COP‑30 e a Cúpula de Líderes do G20.

Participaram do encontro líderes da China, Egito, Indonésia, Irã, Rússia, África do Sul, o príncipe herdeiro dos Emirados Árabes Unidos, o chanceler da Índia e o vice‑ministro das Relações Exteriores da Etiópia, que reafirmaram o compromisso de contribuir para a paz, defender o multilateralismo e construir soluções coletivas para desafios globais.

Novos dilemas

Quando se aborda BRICS e poder econômico, o tema da desdolarização aparece com frequência, impulsionado sobretudo por potências emergentes como Rússia e China. A ideia visa reduzir a dependência das transações internacionais em dólar, mitigando a volatilidade e o poder de influência atrelados à moeda americana. Para países do Sul Global, diminuir o uso do dólar significa recuperar margem de manobra política e econômica e se proteger contra sanções e pressões externas. No âmbito do BRICS, a desdolarização é encarada não só como diversificação cambial, mas também como passo rumo a uma arquitetura financeira mais plural e representativa.

A proposta de criar uma moeda comum do BRICS surge como extensão natural desse debate, prometendo facilitar o comércio intrabloco, cortar custos cambiais e consolidar uma identidade econômica do agrupamento. Entretanto, apesar do apelo estratégico, a ideia enfrenta obstáculos grandes: sistemas financeiros heterogêneos, graus distintos de desenvolvimento, riscos de instabilidade e ausência de garantias sólidas de governança compartilhada. Assim, ainda que uma moeda única seja objeto de estudo e especulação acadêmica, não se vislumbra como viável no curto ou médio prazo.

Destaca‑se também a falta de uma institucionalidade mais consolidada, como um secretariado permanente para o BRICS. Segundo Freitas, embora essa pauta não estivesse formalmente na agenda do grupo este ano, foi tratada de forma indireta. Ele apontou avanços como a melhor integração dos novos membros, a definição de mecanismos para a rotação das presidências e outros elementos de governança que contribuem para a formação de uma institucionalidade nascente, ainda incipiente, mas crucial para o futuro do bloco.

Freitas admite que o Brasil ainda enfrenta obstáculos para atingir plena igualdade dentro do agrupamento, mas reforça que o objetivo central do BRICS é estreitar a cooperação entre nações sem interferir nas escolhas internas de cada uma. “No cenário internacional, as deliberações demandam tempo e um grande esforço. Portanto, é preciso construir, passo a passo, esse novo BRICS ampliado”, afirma.

A heterogeneidade do bloco foi salientada pela pesquisadora Ana Garcia, professora da UFRRJ e coordenadora do Núcleo de Pesquisa “A economia política das relações Sul‑Sul” do BPC. Ela ressaltou que o BRICS ganhou força a partir de uma agenda reformista pós‑2008, destinada a questionar a efetividade das agências de Bretton Woods, sem, no entanto, ter como objetivo derrubá‑las. Segundo analistas, o mundo atravessa a transição de uma ordem unipolar para uma multipolar, em meio a tensões e conflitos. O BRICS aparece como ator relevante nesse processo, mas sua trajetória é marcada por assimetrias internas, disputas de poder e pressões das estruturas hegemônicas.

A pesquisadora Ana Priscila, da Marcha Mundial das Mulheres e atuante na articulação de movimentos populares, destacou a precarização da vida no Sul Global e a “decadência perigosa” do imperialismo ocidental como fatores que tornam o BRICS uma alternativa plausível para muitos países. No entanto, alertou para o caráter muito reformista das discussões sobre nova arquitetura financeira, defendendo que os modelos de desenvolvimento precisam superar a mera exportação de commodities e buscar soluções mais sustentáveis e autônomas.

Nesse quadro, a desdolarização figura como um dos eixos centrais da agenda do bloco, com Rússia e China na liderança dos esforços para reduzir a dependência do dólar. Contudo, o professor Mauricio Metri chamou atenção para as retaliações que costumam acompanhar tentativas de romper com a moeda americana: “Sempre que há tentativa de rompimento com o dólar, a punição é violentamente aplicada aos ‘rebeldes’”. As pressões externas podem se intensificar em períodos de fragilidade política, como o atual.

A efetividade do BRICS em consolidar uma alternativa concreta à ordem global vigente permanece uma questão em aberto, acompanhada com interesse por governos e movimentos sociais no mundo todo. Nogueira Jr. sublinha que o desenvolvimento a nível nacional não pode depender só da cooperação entre países, já que as nações mais avançadas raramente confirmam, na prática, expectativas de solidariedade internacional.

Diante disso, observa‑se que a democracia funciona sobretudo dentro de cada país. No plano internacional, as decisões decisivas são determinadas por estruturas de poder de poucas nações ricas, como no FMI, no Banco Mundial e mesmo na ONU, onde o peso do voto depende do tamanho da economia. É legítimo continuar o esforço para aumentar a representatividade dessas entidades e a influência dos países em desenvolvimento, mas sem ilusões: mudanças profundas que transfiram decisões cruciais para a esfera internacional permanecem fora do alcance imediato, conclui Nogueira Jr.

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