Quem nunca se encantou com uma foto espontânea da criança lambuzada de sorvete ou com aquele vídeo do primeiro dia de aula? Registrar momentos da infância é uma forma legítima de guardar memórias e celebrar os pequenos acontecimentos da vida. Mas em tempos de redes sociais, o que antes era guardado no álbum da família agora ganha curtidas, comentários e muitas vezes, uma exposição excessiva da criança nas redes sociais.
A prática de compartilhar excessivamente a vida dos filhos online ganhou até nome: sharenting, junção das palavras “share” (compartilhar) e “parenting” (criação dos filhos). E embora pareça inofensiva à primeira vista, pode trazer riscos emocionais, cognitivos e até ilegais.
Registrar é amar, mas compartilhar exige pausa
No Brasil, a Constituição Federal, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) garantem que crianças e adolescentes tenham seus direitos fundamentais preservados.
Advogada especialista em direito das famílias, Letícia Peres explica que dar publicidade à imagem de uma criança, mesmo sendo seu filho, é um direito personalíssimo, ou seja, só pode ser exercido por ela ou por seus responsáveis legais com base no interesse da criança.
“Os responsáveis legais precisam se perguntar: ‘Essa exposição é realmente do interesse da criança ou está atendendo a uma vontade minha?’ Ignorar sinais de desconforto ou insistir em registrar tudo pode trazer consequências emocionais sérias. A criança está na fase de brincar, não de ser exposta como um troféu”, afirma Letícia.
Impacto da câmera no desenvolvimento infantil
Neuropsicóloga e psicóloga especialista em adolescência, Lilian Vendrame destaca que a exposição excessiva da criança nas redes pode alterar funções cognitivas essenciais, como atenção, memória e percepção de si. Quando a criança se vê frequentemente sendo filmada, ela pode começar a moldar seu comportamento para agradar à câmera, o que interfere na espontaneidade e na vivência genuína dos momentos.
Segundo ela, isso também compromete a memória autobiográfica, pois, em vez de estar presente na experiência, a criança se vê condicionada a performar para a câmera. Ela deixa de viver o “aqui e agora” e passa a se preocupar com a própria imagem.
Com o tempo, essa exposição recorrente pode impactar a forma como a criança desenvolve sua atenção. “Ela se acostuma a ser o centro das atenções em um certo tipo de contexto e mais tarde, pode sentir dificuldade ao lidar com momentos em que não é notada, o que interfere no desenvolvimento da autorregulação emocional”, conta.
Essa necessidade precoce de “atuar” pode gerar autocensura, afetar a autoestima (que passa a se basear em validação externa) e promover uma adultização precoce. “A criança pode desenvolver uma consciência antecipada sobre como é vista pelos outros, o que pode levá-la a atuar o tempo todo para agradar, reprimindo sua espontaneidade”, explica a neuropsicóloga.
Excesso de exposição prejudica a autonomia
A forma como os pais lidam com a privacidade da criança serve de modelo para a construção da autonomia. Se tudo vira uma exposição excessiva da criança nas redes sociais, inclusive momentos íntimos ou vulneráveis, a criança pode crescer sem desenvolver uma percepção clara dos próprios limites.
Lilian explica que a autonomia saudável nasce da convivência com adultos que demonstram respeito pelos momentos da criança e têm consciência do que compartilham.
“Se os cuidadores têm uma noção enfraquecida de privacidade, a criança pode aprender que sua vulnerabilidade não oferece riscos quando, na verdade, oferece sim. A pergunta central que os pais precisam se fazer é simples mas útil: ‘Essa publicação oferece algum risco à segurança ou ao bem-estar do meu filho?’.”
Embora a atenção com a imagem da criança deva existir sempre, há momentos do desenvolvimento em que os riscos são ainda maiores. A primeira infância, dos 2 aos 6 anos, é um período de intenso desenvolvimento cognitivo, emocional e social, e pode ser afetada pela forma como a criança é tratada ou percebida no ambiente ao redor.
Já na pré-adolescência, dos 8 aos 12 anos, fase marcada por um começo de comparações sociais e construção de identidade, a superexposição pode gerar ansiedade, vergonha, medo de errar e uma necessidade intensa de aprovação externa.
Impactos que vão além da tela
A advogada lembra que, em caso de consequências negativas, como bullying, uso indevido da imagem ou sofrimento emocional, os responsáveis legais podem ser processados civil e criminalmente.
“A identidade digital precisa ser um ato de espontaneidade da criança, pois ela não pode ser criada ou manipulada com fins de atender interesses de terceiros porque é a criança quem sofre diretamente as consequências do assédio originário dessa exposição”, diz.
Além da questão jurídica, Lilian chama atenção para o impacto no vínculo entre pais e filhos. Quando tudo é registrado, filmado e publicado, a experiência real pode transformar a conexão afetiva em um palco.
“Pais que compartilham tudo sem perceber podem estar buscando validação própria, e isso fragiliza a construção de um vínculo genuíno com os filhos. Um vínculo que passa a ser construído mais para os seguidores do que para a criança em si.”
Alguns comportamentos podem indicar que a criança está se sentindo invadida ou desconfortável com a superexposição como irritação ao ver o celular se aproximando, recusa em ser filmada, vergonha das próprias imagens, comportamento artificial diante da câmera ou tristeza após ver conteúdos seus sendo compartilhados.
Outro sinal comum é quando a criança começa a repetir frases como “quero ficar famosa” ou tenta imitar influenciadores digitais sem compreender o que a frase significa. Isso pode apontar para uma identificação com um papel e não com sua própria essência.
Como encontrar o equilíbrio entre afeto e exposição
Nem todo registro é um problema. O desafio está em perceber quando o compartilhamento se torna excessivo e começa a substituir a conexão real. Lilian propõe uma reflexão: “Sua preocupação é criar memórias ou criar conteúdos? Seu filho precisa mais de colo ou de curtidas?”.
Antes de postar, vale se perguntar:
- O que estou buscando com essa publicação?
- Estou fazendo isso por carinho ou por validação?
- Essa imagem representa algo íntimo da criança que ela talvez prefira guardar?
- Como ela se sentirá ao rever isso daqui a alguns anos?
“A infância é feita de descobertas, bagunças e imperfeições. Preservar esse espaço é também permitir que as crianças cresçam com liberdade para serem quem são e não apenas quem os adultos querem mostrar.”








