Os desenvolvimentos tecnológicos que propiciam novas formas de exploração das obras artísticas requerem sempre adaptações jurídicas para garantir que o autor possa controlar sua obra e participar dos rendimentos gerados por essas novas explorações.
Esse processo de adaptação jurídica necessária remonta à origem dos direitos autorais. A Convenção de Berna de 1886 coincidiu com o nascimento do cinema e do gramofone no final do século XIX. Ambos, seguidos pelo surgimento do rádio na década de 1920 e posteriormente pela televisão, suscitaram as mesmas questões em relação às formas de consumo das obras artísticas e ao necessário reconhecimento de propriedade intelectual sobre essas novas maneiras de difundir as criações.
Pode-se pensar que a irrupção da inteligência artificial (IA) não é mais do que outro processo tecnológico que requer uma adaptação jurídica para manter o equilíbrio entre os direitos autorais e os avanços digitais. Mas a IA não é apenas uma nova modalidade de exploração, mas uma ferramenta que intervém na própria criação das obras.
Essa intervenção pode ocorrer como ajuda na tarefa criativa do autor, diminuindo o tempo dedicado a tarefas mecânicas e repetitivas, para que ele possa assim se concentrar no essencial. É comum o uso de ferramentas que aliviam a pressão da vontade e facilitam que o talento se concentre em provocar faíscas do cérebro, como dizia Clarín. Nesses casos, trata-se da IA que complementa o autor, as chamadas “obras assistidas por IA”.
Mas a verdadeira novidade da IA é que gera conteúdos a partir de indicações gerais de qualquer pessoa, sem nenhuma inspiração ou conhecimento artístico. Esse ataque qualitativo da máquina à criação humana se estende a qualquer âmbito artístico. Um mero prompt (termo utilizado para identificar as instruções dadas à IA) pode gerar música, desenhos, obras em 3D, textos escritos ou até mesmo invenções científicas. Estamos falando da IA generativa, com resultados aleatórios e imprevisíveis.
Entre os numerosos desafios que a IA propõe, existe ainda a dificuldade de traçar uma fronteira indiscutível entre as obras criadas com assistência de IA e os conteúdos gerados sem praticamente intervenção humana.
Esse potencial da IA generativa, portanto, apresenta enormes desafios que questionam a reserva tradicional da autoria e dos direitos autorais para os humanos, que corroem o próprio tecido social da cultura que nasce da comunidade e se expressa através de criadores que são capazes de transformar os sentimentos sociais em obras artísticas.
Entre os numerosos desafios que a IA apresenta, existe ainda a dificuldade de traçar uma fronteira indiscutível entre as obras criadas com assistência de IA e os conteúdos gerados sem quase intervenção humana. Como distinguir entre obras criadas —humanas— e geradas autonomamente pela máquina? Quando são obras que merecem estar protegidas por direitos autorais?
Na Espanha e praticamente em toda a Europa, a criação humana é condição indispensável para que exista uma obra protegível por direitos autorais. Mesmo a lei de copyright do Reino Unido, que reconhece as “obras geradas por computador”, protege a pessoa que toma as decisões ou estabelece os parâmetros para a geração da obra. Sempre é necessária alguma forma de intervenção ou direção humana.
Nos Estados Unidos, o Escritório de copyright rejeitou em 2011 o registro do selfie que o macaco Naruto tirou como obra fotográfica, considerando que apenas os seres humanos (não os animais) poderiam criar obras protegidas por copyright. Recentemente, foi negado o registro de obras geradas por IA, devido à falta de comprovação de um nível suficiente de controle humano. Em contrapartida, quando uma pessoa seleciona ou organiza material gerado por IA de maneira suficientemente criativa, tais obras podem merecer proteção dos direitos autorais.
Na China, o Tribunal da Internet de Beijing, analisando a imagem de uma colegial gerada por IA, considerou que a obra era protegível, já que o autor havia determinado com um elevado nível de detalhe os “prompts”, influenciando de forma precisa no algoritmo e, assim, no resultado de cada aspecto da fotografia.
O problema da autoria transcende ao próprio criador e afeta a sociedade em que vivemos, pois o autor não é mais que o porta-vozes de suas percepções, plasmando-as em um universo artístico.
Assim, cabe questionar se a sociedade tem o direito de ser informada sobre os conteúdos que lhe são oferecidos, por exemplo, as músicas, quando estas são geradas por IA, ou se existe um direito, como membro de uma comunidade, de evitar que os autores — protagonistas da criação da cultura, e integrantes da comunidade — sejam substituídos por máquinas.
Se o consumidor tem o direito de conhecer as características e qualidades dos produtos que lhe são oferecidos, não deveriam também ser identificadas as músicas criadas por IA? Não deveríamos receber informações sobre a pré-seleção de conteúdos recomendados pelas plataformas musicais com algoritmos ao estarem perfilando nossos gostos com critérios comerciais?
Afinal, se as leis que salvaguardam o patrimônio cultural reservam aos indivíduos e comunidades que o formam o desenvolvimento das manifestações culturais, e expulsam deste ecossistema elementos alheios aos seus protagonistas, não deveria também ser limitada a colonização por parte da máquina deste âmbito?
Precisamos de uma resposta regulatória urgente, especialmente sobre que proteção deve ter um produto gerado por IA. Não faz sentido proteger com direitos autorais aquilo que não é produto da criação humana. A melhor garantia para manter nossa cultura ancorada na comunidade que a inspira é garantir essa vinculação entre direitos autorais e criação humana.
O autor deve poder apoiar-se nessas novas ferramentas, mas não ser substituído. As obras criadas com a assistência de IA merecem estar protegidas por direitos autorais, desde que a IA seja uma mera ferramenta. Mas quando a intervenção do prompter carece de elementos criativos e não influencia no resultado final, limitando-se a instruções gerais que produzem um resultado aleatório e imprevisível, não pode ser considerada uma criação humana.
O autor deve poder apoiar-se nessas novas ferramentas, mas não ser substituído.
É imprescindível que a proteção da cultura e da diversidade cultural, tantas vezes associada ao estabelecimento de cotas mínimas de divulgação (assim, as cotas para o cinema europeu ou para a música minoritária), se estenda à introdução de cotas vinculadas à criação de autores humanos. A legislação francesa obriga as emissoras a dedicar um percentual de sua programação à música em francês, para proteger a identidade cultural e as minorias linguísticas. Na Espanha, promove-se a difusão de conteúdos em línguas co-oficiais. Mas, com a tecnologia atual, de que serve que 100% da música emitida em uma rádio galega seja em galego, se é uma máquina de Silicon Valley que produziu o som e a letra?
Assim como foi necessário regular a existência de cotas mínimas de conteúdo europeu por meio da Diretiva de Serviços Audiovisuais para impedir que o produto audiovisual norte-americano dominasse toda a oferta audiovisual na televisão e plataformas de vídeo sob demanda, devemos agora fazer o mesmo para promover a cultura e a diversidade cultural, introduzindo na regulamentação uma cota mínima garantida de criação humana nos meios, ou um limite para a cota de invasão da máquina. Somente assim será possível salvaguardar a criação humana e, em última instância, a cultura.