Parte II
Olá, você! Aqui de volta hoje vamos dar continuidade ao artigo “Nascimento: uma travessia
inesquecível em mil tons” e abordar os elementos quintessências da musicalidade e poética de
Clube da Esquina.
Musicalmente e liricamente há muita coisa para observar, porém, antes disso, vamos contextualizar um pouco o ambiente político, musical, e entender o que caracterizava o Mo(vi)mento e a proposta apresentada nesse trabalho coletivo de integração, criação e gravação. (Alerta de #spoiller sobre o próximo artigo no final do texto…).
“Trem de doido”
A música brasileira já tinha visto décadas de evolução do choro, do samba, da música nordestina,
modas de viola, desde o início do século até então. A bossa nova revolucionou a música brasileira
em 1958, rompendo a tradição do modo impostado de cantar e nos acompanhamentos orquestrais
oferecendo outras possibilidades estilísticas.
Derivado da bossa nova gerou-se também o estilo samba jazz, tocado tanto no formato dos grandes trios instrumentais (geralmente formados com bateria, baixo e piano – ou outra formação) bem como a versão de intérpretes ao piano/violão e voz. Essa vertente teve representantes memoráveis com discos clássicos.
Cinco anos após o lançamento de “Chega de Saudade”, em 63 Jorge Ben começou a elaborar um
“Samba Esquema Novo” (ainda tocando samba jazz) que mais tarde levaria ao samba rock.
“Nuvem cigana”
Menos de dois anos depois, em 65 foi a vez da Jovem Guarda revolucionar impactando tanto a
música (introduzindo as guitarras elétricas) como também os costumes.
A essa altura, em resposta ao contexto político do país – em decorrência da ditadura militar – nasceu o que ficou conhecido como canção de protesto. Nem tudo era “o amor, o sorriso e a flor” ou “meu calhambeque” naqueles tempos…
No fim da década, em 68 o Tropicalismo veio incendiar a música nacional aglutinando os diversos
elementos presentes nesse caldeirão fervilhante. Em sequência em 69 entra em cena o “rock’n roll” psicodélico/progressivo paulistano com o primeiro lançamento de Os Mutantes, que já haviam
gravado com a turma tropicalista.
No ano seguinte estreavam os Novos Baianos com seu primeiro LP unindo guitarra e brasilidade à
baiana. Foram disseminadas por aqui as sonoridades do soul e do funk colhidos em solo
estadunidense por Tim Maia. Dali a dois anos o “rock rural” de Sá, Rodrix e Guarabyra daria as
caras.
Bituca lançou o álbum Milton (1970) no qual inovou dentro de seu estilo, até então mais à bossa
nova, à voz e violão e à orquestra. Nesse disco sua sonoridade encontrou pares insólitos: uma banda de rock progressivo chamada Som Imaginário. Essa fusão redirecionou o curso musical de sua carreira levando-o a incorporar mais esses elementos à sua música, na roupagem e na composição.
Isso somado à toda carga cultural geneticamente já contida em si. O resultado viria no seu próximo trabalho.
“Ao que vai nascer”
Ao planejar a gravação de Clube da Esquina Bituca tinha em mente algo fora do comum em vários
aspectos. Começando pela decisão de fazer um LP duplo, algo inédito no Brasil àquela época. Por
conta da demora na gravação, acabou que Gal Costa conseguiu lançar antes dele o primeiro LP
duplo nacional. Mas havia mais coisa, por exemplo a escolha da capa.
Uma fotografia tirada de dentro de um carro em movimento retratando dois meninos sentados no
mato à beira de uma estrada, um branco e um negro. Nenhuma palavra escrita, sem título, nome do artista, nada. Um mistério total!
Outra fato em relação ao projeto foi que Bituca colocou informou Odeon/EMI que o crédito pelo
disco seria dividido com outro artista. Um rapaz, completo desconhecido do público, da mídia e do
circuito musical. LP duplo, capa sem texto: título, nome. Nem foto dos artistas. Lo Borges já era um compositor genial e cheio de originalidade que fazia uma fusão entre a sofisticação harmônica da bossa nova e a pegada pop/rock/psicodélica dos Beatles.
O processo criativo antes e durante o estúdio foi especial. Por alguns meses Bituca, Lô Borges e
Beto Guedes se hospedaram numa casa de praia em Niterói, onde compuseram as músicas em
colaboração com seus constantes e heroicos letristas: Márcio Borges, Fernando Brant e Ronaldo
Bastos – este último também responsável pela produção musical do álbum e por garantir a
identidade conceitual do trabalho. É possível perceber uma conexão entre as diversas faixas do
disco facilmente.
“Um gosto de sol”
O termo “Clube da esquina” surgiu como brincadeira da mãe de Lô Borges em resposta quando
alguém o procurava em sua casa e o mesmo estava na rua com seu violão audaz. Apareceu pela
primeira vez no disco “Milton” de 70 como nome de uma composição em parceria com Lo Borges.
Dois anos depois o termo foi utilizado como título do próximo álbum – e também de uma outra
canção, originalmente instrumental, batizada de “Clube da Esquina nº 2”. Clube da esquina acabou
sendo também o nome pelo qual ficou conhecida a sonoridade e o estilo musical dos participantes
desse coletivo, juntos ou separadamente.
Mas afinal, o que torna o Clube da Esquina tão valioso e influente?
Uma das explicações óbvias é a rica musicalidade de Bituca que incorpora elementos indígenas,
afro brasileiros – em especial as congadas, trazendo à tona uma cultura regional e folclórica de
expressão diferenciada do samba. Além disso, também incorpora elementos da música espanhola e latino americana. Não bastasse isso, ainda traz em si o jazz, o rock e a música erudita.
Outra razão foi a liberdade dos músicos em trazer suas ideias e experimentar inclusive tocando
instrumentos que não eram o seu instrumento de domínio. A qualidade criativa desses músicos, suas diferentes formações e alto nível musical também foram decisivos, bem como o processo artístico coletivo e aberto.
As faixas do disco passam bem essa sensação. A música soa espontânea e bem à
vontade.
As informações contidas ali são variadas e fogem a lugares comuns, dão brecha a novidades que
inspiraram artistas do jazz ao rock. A forte presença de percussão em geral, mas especialmente de Naná Vasconcelos, que vai além do ritmo e se caracteriza como elemento que orna as harmonias e melodias criando texturas estratosféricas e várias camadas. Nesse disco Bituca também explorou o falsete ao limite, bem mais do que já havia feito até então.
O disco apresenta o gênero musical “world music” bem antes do termo passar a ser utilizado na
indústria. Essa característica multi étinica na sonoridade e no repertório é um elemento essencial em termos de riqueza musical. Pode-se dizer assim que tudo aquilo que a Tropicália aglutinou, o Clube deglutiu. Usaram elementos iguais, mas fizeram algo bem diferente. Mas além dessa há ainda a riqueza lírica. Se a Tropicália tinha inspiração no concretismo, o Clube dialogava com o arcadismo.
Em sua poética traz os frequentemente os temas da viagem, da liberdade, do amor, da cidade e do campo, da amizade, da fé, do sonho. A esquina onde se encontravam e se reuniam, o lugar que a todos nivela como simples pessoas. E também traz sentimentos como a angústia, o medo e
inconformidade numa crítica sutil e elaborada à situação política e a expectativa de um futuro
melhor. Tudo isso expresso com muita elegância e sensibilidade, recorrendo a poderosas imagens e símbolos particulares e universais.
E assim gravou-se na história o seu apelido, seu nome, o de sua mãe Lília, das ruas Divinópolis e
Paraisópolis, Três Pontas, família Borges e muitas pessoas mais que não caberiam aqui. Minas!
P.S. – Bem, vocês viram que eu citei uma música do Chico Buarque na primeira parte.
E por acaso – “ou não” – o próximo tema aqui será um dos seus trabalhos que adoro. É uma letra de uma canção que reflete sobre a palavra: “Uma Palavra”. E eu nem te conto que uma palavra só já dá pano pra manga… Então aguarde para passearmos juntos por essa linda canção e seus dizeres.