segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Cinemateca exibe mostra gratuita de western nordestino

A palavra “nordestern”, que batiza a mostra inaugural da programação da Cinemateca Brasileira para 2023 foi criada por óbvia analogia com o “western” criado nos EUA. Entre nós, ela designa uma saga que, antes de tudo, ilustra o banditismo que sucedeu a brutal destruição de Canudos promovida no início da República e a consequente perseguição do Estado a esses bandoleiros.

Garante a Cinemateca que a palavra surgiu nos anos 1950, por obra do crítico Salvyano Cavalcanti de Paiva; ela cai como uma luva ao filme inaugural do ciclo, “O Cangaceiro”, de Lima Barreto. Ali percebe-se que há mesmo muito de faroeste: lá estão o cangaceiro bom e o cangaceiro mau, a violência frívola contra as populações inocentes etc. A visão é, em suma, bem oficial. A estética também, apesar da influência cruzada do cinema mexicano.

Apesar de deficiências que hoje se pode notar sem dificuldade, “O Cangaceiro” ganhou prêmio de melhor filme de aventura em Cannes (ainda não existia a Palma de Ouro), virou sucesso mundial e mostrou à Vera Cruz que temáticas brasileiras podiam interessar ao público (estrangeiro em particular) muito mais que seus pretensiosos melodramas “universais”. Já era tarde, no entanto: a companhia estava falimentar e com os dias contados.

O “nordestern”, ao contrário, prosperou. Nesta mostra o encontraremos em três vertentes: os filmes ficcionais, os documentários e alguns laterais ao cangaço, mas pertencentes ao mesmo universo.

Na primeira categoria encontra-se desde o cinema conformista patrocinado pela Cinedistri, caso de “A Morte Comanda o Cangaço”, de Carlos Coimbra (o primeiro a introduzir o cinema em cores no cangaço), onde se impõe, como em “O Cangaceiro”, a ideia do bandido social como espetáculo”, como definiu Ismail Xavier, até o turbilhão inventivo de “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, no qual as cores não surgem como elemento espetacular, e sim como elemento essencial da “dialética da violência” (definição de Luiz Carlos Maciel assimilada também por Ismail em seu “Sertão Mar”) em Glauber Rocha.

“O Dragão da Maldade” é também a última aparição do marcante personagem Antônio das Mortes, introduzido em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (ausente do ciclo) que personifica todas as forças repressivas que atuaram no Nordeste brasileiro contra o cangaço.

Entre as ficções destaca-se ainda “O Baile Perfumado”, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, filme essencial do cinema pernambucano contemporâneo, que anunciava, em 1995, a existência de um novo Nordeste, moderno, pop, tecnológico e, sobretudo, vivo. Já “Sertânia” (2020), magnífico trabalho final de Geraldo Sarno (1938-2022), em que aborda a trajetória do cangaceiro Gavião, que viveu o fim do cangaço, veio para São Paulo e mais tarde retornou ao sertão.

O quebra-cabeça armado por Sarno não deixa de lembrar o papel do Nordeste na vida brasileira desde, pelo menos, que Euclydes da Cunha publicou “Os Sertões”: esse lugar simbólico em que a luta e a perseverança se confundem. Ou, como descreve o autor, já no final dos combates, com Canudos esmagada, a “luta sertaneja não perdera por completo o traço misterioso, que conservaria até o fim”.

Talvez seja esse o mote para “Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça Filho, em que a resistência de uma pequena cidade nordestina à invasão por estrangeiros (que parecem por vezes alienígenas) será feroz. É o momento em que a pequena cidade apela a seus malditos, os bandoleiros que vivem nas proximidades, para a luta. Será essencial à resistência esse reencontro com o espírito do cangaço, representado por esses malditos.

O setor de documentários foi, desde os anos 1960, essencial para a descoberta do sertão pelo restante do país. No caso da mostra, pode-se retroceder ao primeiro filme feito sobre o cangaço e no interior dele, “Lampeão”. Ali estão reunidos os 11 minutos que restaram das cenas em que Benjamin Abraão captou, em 1936 (que foram tematizadas em “O Baile Perfumado), o cotidiano da vida do grupo de Lampião.

Mas será preciso atentar também para “Memória do Cangaço” (1964), de Paulo Gil Soares, “O Últimos Cangaceiros” (2012), de Wolney Oliveira (dois filmes que documentam personagens que viveram o cangaço). Já a “A Mulher no Cangaço” (1976), de Hermano Penna, e “A Musa do Cangaço” (1982), de José Umberto Dias reencontram personagens femininas da saga, com destaque para Dadá, a célebre mulher de Corisco.

Por fim, a mostra traz alguns filmes que podem ser classificados como adjacentes ao cangaço, como a luminosa estreia de Walter Lima Jr., em “Menino de Engenho” (1965), adaptação do romance de José Lins do Rego, ou “O Homem que Virou Suco” (1981), em que João Batista de Andrade trata do retirante que, chegando a São Paulo, é confundido com um criminoso.

Os 16 títulos dessa mostra serão acompanhados por uma conversa do diretor Keleber Mendonça Filho e do pesquisador Luiz Felipe Miranda com os espectadores, antes da sessão de “Bacurau” (na quinta-feira, dia 19, às 16h) e pelo debate, no dia 28, sobre o tema Mulheres no Cangaço, com a jornalista e pesquisadora Maria do Rosário Caetano, a professora emérita da USP Walnice Nogueira Galvão, e o cineasta Paulo Caldas.

Em poucas palavras, eis aí um ciclo a calhar: fala, ao mesmo tempo, da luta dos sertanejos contra a natureza e a hostil indiferença dos sulistas, como da resistência da Cinemateca Brasileira, que ressurge das cinzas (até das literais) e, de certo modo, representa também a resistência de um cinema, o brasileiro, bem mais relevante do que costuma o Brasil considerar.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Compartilhe

Recentes

Leia Também


Notice: ob_end_flush(): Failed to send buffer of zlib output compression (1) in /home/ocapixaba/public_html/wp-includes/functions.php on line 5427

Notice: ob_end_flush(): Failed to send buffer of zlib output compression (1) in /home/ocapixaba/public_html/wp-includes/functions.php on line 5427