Com o corpo todo coberto de preto e uma bolsa bege a tiracolo, Ekra Akter posa sorridente para uma foto em frente ao Estádio Internacional Khalifa. uma rara tarde de sol coberto por nuvens quase transparentes na quente e cinzenta Doha.
O celular apontado para ela está nas mãos de Raisul Islam, seu companheiro de longa data desde antes de se mudarem de Bangladesh para o Catar. Juntos, estavam a caminho das arquibancada da imponente arena para quase 50 mil torcedores para assistir ao jogo decisivo entre Senegal e Equador, pelo Grupo A da Copa do Mundo. Ekra s uma das milhares de mulheres que, de diferentes maneiras, participam do primeiro Mundial de futebol no Oriente Médio.
Ao notar a aproximação tímida, Raisul é receptivo. Ele veste uma cala social preta, uma camisa gola polo branca e aproveita o tempo ameno para deixar os óculos escuros escorados acima da cabeça. Assim que ouve do que se trata aquela abordagem, toma a dianteira da conversa e gesticula, enquanto a esposa desvia o olhar.
O encontro com os dois é simbólico nos mais variados aspectos da relação entre masculino e feminino para além do Oriente Médio, mas evidentemente no sintetiza a complexidade das funes desempenhadas pelas mulheres durante a Copa. Mais timidamente ou não, elas estão nas arquibancadas, em funções administrativas, entre os voluntários, seguranças e em campo.
O Catar tem menos de 3 milhões de habitantes, dos quais cerca de 350 mil são nativos. Em um país formado majoritariamente por imigrantes (70%), o papel socialmente atribuído às mulheres é uma grande reação cinzenta. Há desde as famílias mais liberais, com regras menos rígidas, até aquelas ditas tradicionais, em que a religião cumpre funo impositiva que vai muito além da vestimenta.
Em resumo, as mulheres precisam de uma autorização formal de um homem para inúmeras decisões, como casamento, divórcio, viagens, estudo no exterior. Também exigida aprovação para exames ginecológicos e tratamento de sade reprodutiva. O tutor pode ser pai, irmão, tio, padrinho ou marido.
Em relatório da ONG Human Rights Watch (Observatório de Direitos Humanos, em português) publicado em 2019, a pesquisadora Rothna Begum escreveu que “a tutela masculina reforça o poder e o controle dos homens sobre a vida e as escolhas das mulheres e pode encorajar ou fomentar a violência pela família ou por seus maridos”.
No mesmo documento, pontua que o sistema de guarda entra em contradição com a constituição catari. ” uma mistura de leis, políticas e práticas em que as mulheres adultas devem obter permissão de seu responsável masculino para atividades específicas”, publicou a HRW.
“O empoderamento feminino é fundamental. No Catar, as mulheres ocupam papéis de destaque em todos os aspectos da vida, incluindo a tomada de decisões políticas e econômicas”, defendeu a administração do país.
“O Catar lidera a região em quase todos os indicadores de igualdade de gênero, incluindo a maior taxa de participação da fora de trabalho para mulheres, remuneração igualitária no setor governamental, e o maior percentual de mulheres matriculadas em programas universitários”, completou.Efetivamente, há movimentos de busca por igualdade no Catar, e as mulheres, ainda que em menor número, têm passado a ocupar mais posições de poder.
Na Copa do Mundo
Entre os jornalistas que cobrem a Copa, raríssimas só as vozes femininas – sintoma da desigualdade de gênero que afeta o mundo inteiro. Ainda que em número inferior aos homens, há mulheres na segurança dos estádios, no programa de voluntários e na arbitragem.
“Esta a primeira Copa do Mundo com mulheres na arbitragem, certo? Isso não aconteceu nos Estados Unidos, não aconteceu no Ocidente, isso está acontecendo aqui no Oriente Médio. Acho que isso fala por si só”, defendeu Índigo Salah, muçulmana que vive em Londres e está no Catar para acompanhar a competição.
“Eu penso que as mulheres têm sido envolvidas em cada aspecto da preparação e do planejamento para a Copa do Mundo. Acho que isso evidente, porque tem mulheres em cada atividade que você vai. Acho que eles fizeram uma escolha consciente para ter certeza que as mulheres estejam envolvidas. Então, legal ver isso” corroborou Fati Salah, britânica com origem nigeriana.
“É bem diferente do Brasil, claro. Em muitos casos, até tranquilo usar a roupa que quero, com decote, mais curta por causa do calor. É claro que em alguns lugares eu prefiro evitar, como o Souq Waqif (mercado tradicional da cidade), por exemplo, porque no seria bem visto”, disse Kellen, após cantar um samba minutos antes de Argentina e México se enfrentarem.
O tema ganhou força especialmente como reação ao caso de Mahsa Amini, que apareceu morta aos 22 anos após ser presa por “uso inadequado” do véu islâmico. Cerca de 380 pessoas morreram desde que as manifestações começaram, em setembro, de acordo com a Iran Human Rights Watch.