Julho marca o Dia Internacional da Mulher Negra Latina-Americana e Caribenha, além de ser o Julho das Pretas. E sempre que nos aproximamos de uma data significativa para o povo preto, surgem das catacumbas pessoas brancas sem noção perguntando as maiores besteiras, até perguntas ou afirmações que podem facilmente ser enquadradas como crime.
Felizmente, temos a Lei 7716, que define os crimes resultantes de preconceito de raça e de cor. Racismo é crime e tem consequência, o importante é denunciar e ajudar outras pessoas a denunciarem.
Mas quero trazer uma reflexão que me surgiu quando vi a notícia da Folha de São Paulo com o título “6 em cada 10 pardos não se consideram negros, diz Datafolha”. Acompanho vários criadores de conteúdo negros que falam sobre mobilização e organização do povo preto e da classe trabalhadora, e já tem um tempinho que discutiram sobre o conceito de “Parditude”. E se você não está nessas bolhas, vou explicar brevemente, mas recomendo os perfis de Instagram: Mauro Baracho (@afroestima2); Tito Sant’Anna (@titosantanna); Preto de Fato (@pretodefatu); Pra Preto Ler (@prapretoler); Thiago André (@historia_preta); Negrê (@sitenegre).
Resumindo, assim como existe o termo “Negritude”, que surgiu na literatura e trouxe um sentimento de orgulho acerca da cultura negra, de valorização dos traços negros, mas que hoje também carrega um significado político, de combate ao racismo e de reafirmação das pessoas negras e/ou com traços negros. Nesse sentido, “Parditude” seria uma divisão do que é o Pardo e do que é o Negro, como se o pardo não fosse pertencente as comunidades e lutas negras, é basicamente uma retórica ressentida contra a Negritude. E essa divisão não é nova, na época da casa grande e da senzala já havia distinção entre o negro e o mulato (pardo).
É importante ressaltar que essa “hierarquia” só existe no Brasil, principalmente pelo tipo de história que nossos ancestrais viveram. Fala-se muito de um Brasil miscigenado, mas aquela visão de “Branqueamento” ainda existe, e isso fica evidente quando criam termos para dividir pessoas que foram igualmente oprimidas, pardos sofrem tanto quanto negros, e negar isso não passa de puro negacionismo. No Brasil, o pardo é o “negro aceitável”, e é óbvio que pessoas de pele retinta sofrem mais preconceitos e desafetos na sociedade capitalista.
E é só no Brasil, que “você é preto ou pardo somente quando interessa”, já citando a matéria do Intercept, que publicou “denúncias de pessoas brancas se autodeclarando pretas em eleição da OAB-DF [trazendo] novamente ao debate a instrumentalização da cor da pele como forma de ocupar um espaço historicamente negado justamente a negros e negras”.
Aqui deixo outra indicação, o livro “O pacto da branquitude” da Cida Bento, caso queira iniciar nos estudos sobre raça no Brasil. E por favor, não passe vergonha dizendo “é raça humana”, isso mostra sua limitação sobre os sofrimentos históricos no nosso país sob pessoas negras e pardas.
Voltando à história, na universidade tive que ler “Casa-grande & senzala” de Gilberto Freyre. Confesso que não tenho boas memórias com esse livro, mas só trouxe para a nossa reflexão porque uma passagem me marcou e mostra como as mulheres eram vistas (e acredito que ainda são vistas assim pelos homens que tanto querem voltar ao passado): “Com relação ao Brasil que o diga o ditado: ‘Branca para casar, mulata para f…, negra para trabalhar’ ditado em que se sente, ao lado do convencialismo social da superioridade da mulher branca e da inferioridade da preta, a preferência sexual pela mulata” (1933, p.36). Essa citação é um breve recorte para mostrar que além de preferência racial, a mulher já era tratada como objeto de desejo pelos homens, que a cor da nossa pele influencia (até hoje) se somos mulheres para casar, para namorar ou para trabalhar. Então não podemos falar da raça sem falar de gênero.
Poderia ainda trazer diversas obras que falam sobre o negro e mulato (pardo) no Brasil, ou até obras artísticas como “A Redenção de Cam”, entre outras que foram usadas para dizer que “embranquecer” a população brasileira era importante e científico, que na verdade já foi comprovado que cientificamente e biologicamente como uma tese falida e racista. Mas também não podemos falar dessas coisas, sem antes falarmos de “Consciência”.
E quando falamos de “Consciência negra”, principalmente do dia que se tornou feriado, aí sim vemos um bando de brancos ressentidos privilegiados perguntando “cadê a consciência branca?”.
Vamos ser pragmáticos, de acordo com o Google, consciência “refere-se à capacidade de ter conhecimento ou percepção de si mesmo, do mundo ao redor e de suas experiências”. Se o mundo é regido por uma lógica cis-hétero-normativa e historicamente criou-se a imagem do branco como superior as outras raças (negros, pardos, amarelos, etc), para quê um “dia da consciência branca”, se o mundo foi moldado para os brancos? O branco tem falta de capacidade de conhecimento ou percepção de si mesmo? É igual pedir um dia do orgulho hétero ou dia dos legendários. Parece puro ressentimento, com gostinho de apagamento de uma luta imensa contra a opressão sistêmica, para enaltecer homem branco hétero em crise de masculinidade que não sabe lidar pacificamente com mulheres, negros e LGBTs. A não ser que você ache bacana comemorar um dia de um bando de homens que acham que precisam subir um monte para aprender a ser homem e parar de trair a esposa.
Então se essa reflexão sobre consciência, pardos e negros, passa por ressentimentos de brancos e de pardos que não conseguem sentir pertencimento nas causas, lutas e comunidades negras, que reitero, também lutam junto com mulheres e LGBTs, talvez essas lutas não servem para essas pessoas, mesmo que as beneficiem, como é o caso dos pardos. Um exemplo de luta da população negra é a Lei de Cotas, que beneficiou negros e pardos.
Em um artigo da AzMina, que também foi publicado no Geledés – Consciência negra: o peso de ser a primeira – trouxe uma estatística muito importante para mostrar que não, a Lei de Cotas não fez ter mais negro e pardo nas universidades, e que mostra a hipocrisia de parlamentares que tentam atacar a lei que abriu espaços que eram simplesmente negados. “Em 2020, apenas 2% dos alunos de pós-graduação no Brasil eram pretos, 12,7% eram pardos, 2% amarelos, menos de 0,5% indígenas e 82,7% eram brancos. O levantamento foi feito pela Liga de Ciência Preta Brasileira com dados da Plataforma Lattes, serviços do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que reúne informações curriculares, grupos de pesquisa e instituições das áreas de ciência e tecnologia”.
Arte: AzMina
Talvez, dados como este mostrem que pardos são mais aceitos na sociedade brasileira do que negros. Mas ainda quero trazer mais uma estatística que no mínimo causa revolta, dessa vez de um artigo publicado no Geledés em 25 de novembro de 2009, chamado Consciência negra é consciência de classes e de luta. “[…] pesquisas como a do estudo da Uerj/Unicef, revelam que as mortes violentas correspondem a 46% dos óbitos de adolescentes no país e é a principal causa de mortes na faixa etária entre 12 e 18 anos. Com isso 33 mil adolescentes deverão morrer por conta da violência até 2012. São quase 5 mil mortes por ano. Em geral, o adolescente assassinado é homem, negro e tem baixa escolaridade”.
Já passamos de 2012 e mudou muita coisa? O genocídio da população negra periférica acabou? Não. De 2012 até 2022 a previsão era de um homicídio de pessoa negra a cada 12 minutos.
Enquanto isso, em pleno 2025, um jovem branco com boa aparência pode entrar em um condomínio e roubar cerca de R$30 milhões em bens sem levantar suspeitas, simplesmente por ser branco. E sobre esse assunto destaco o artigo/reflexão da Ana Cristina Rosa, no Geledés, com o nome Quem vê cara não vê coração, que para a nossa reflexão trago somente este recorte: “3 em cada 4 pessoas cumprindo pena antes do julgamento são pretas ou pardas”.
A casa-grande e a senzala só se modernizou para condomínios fechados e periferias, ainda jogam mulatos (pardos) contra negros, como se ambos não fossem duramente oprimidos, ainda tentam nos convencer que existe uma raça superior, ou que as minorias (negros, mulheres e LGBTs) vão tomar conta do país. Ainda é “Nós contra Eles”. Porém, que lembremos sempre quem está dentro da casa-grande.
Arte: Desenhos do Nando