Recentemente tive um desprazer de começar a ler um livro chamado “A mentalidade do fundador”. A princípio o título me chamou a atenção, pois empreendo e acreditei que poderia encontrar algo útil no livro. Infelizmente, ou felizmente entendo que não empreendo porque é tendência, mas porque o mundo do trabalho é tão precarizado, que os brasileiros são forçados a empreender para ter o mínimo de dignidade. Isso me fez detestar o livro. Então aqui vou propor uma inversão de tudo o que é falado no livro “A mentalidade do fundador”.
Alguns dos princípios no livro, que são chamados de “distintivos”, focam em 3 pilares: Cabeça de dono; Insurgência e Obsessão com a linha de frente. Cada pilar tem mais 3 itens adicionados.
Vamos começar com o primeiro: Cabeça de dono. A crítica aqui é bem simples, dentro dessa tal cabeça imaginária, que o autor sugere, tem: Forte foco no caixa; Viés para a ação e Aversão à burocracia. Me sinto em casa para falar disso, pois lido com a burocracia mais densa, com o caixa e tô na produção. A proposta do livro não é te dar meios para encontrar um jeito de equilibrar essas coisas, é dizer que você, empreendedor, como dono do negócio, precisa se envolver. Se você empreende ou já empreendeu, certamente você faz ou fazia muitas etapas da produção, além da parte administrativa. E é óbvio que precisamos ter um foco no caixa, até porque de lá vem o nosso sustento, e que precisamos agir constantemente na produção, seja porque é MEI, porque tem poucos ou nenhum funcionário. A parte do agir para nós, trabalhadores, é natural, mas para o autor desse livro não é. E quando ele fala de aversão à burocracia, para quem empreende parece ridículo, que a nossa burocracia é contrato, financeiro e olha lá, ainda mais se for na área de serviços, a burocracia não é algo que realmente atrapalhe, faz parte do comercial para fechar contratos ou parceiros, para definir uma linha de produção/processo. Já trabalhei em empresa grande que aí sim a documentação era insana, ao ponto de que para mudar uma peça de um projeto era no mínimo 3 reuniões e uma equipe grande de funcionários especializados, mas isso não acontece para nós que empreendemos por necessidade.
A verdade é que este livro é feito para quem detém capital, ou seja, para quem quer investir em algum negócio. O que não é o caso da imensa maioria dos brasileiros empreendedores. Parece um livro para investidor do tipo “shark tank”. Mas vamos continuar a desconstrução dessa tal mentalidade.
Aqui as coisas começam a parecer coach de internet, naquele modelo “faça como eu e você vai ter sucesso”. O segundo pilar, a Insurgência, é um clássico de “precisa ter palavras bonitas para dizer algo simples”. Neste estão os itens: Missão ousada; “Agudeza” e Horizonte ilimitado. Vou resumir porque foi bem enfadonho de ler sobre isso. Sabe aquele papo de missão, valores e visão? É meio que isso, mas tenta extrapolar para uma certa “missão ousada”, que nada mais é do que ter um objetivo, uma grande ideia de produto ou serviço que parece fora da caixinha. É sim importante ter missão, valores e visão para saber aonde quer chegar, nem que seja um objetivo simples: sobreviver. Mas para essa galera prato feito de coach, sobreviver não vende livro ruim, por isso o autor coloca aqui “agudeza”, que é um jeito de dizer que você precisa ter sagacidade no seu negócio. Tinha que ser sagaz a vida toda para não ser feito de trouxa, inclusive para não cair nesse papinho de que para ter sucesso (e aqui leia-se “ficar rico”, que esse é o propósito do livro) você precisa participar da sua própria empresa. Só imagine, que tipo de dono não participa da própria empresa? A resposta fica para a reflexão. Continuando, o próximo item: horizonte ilimitado, é parecido com aquela famosa frase “o céu é o limite”. Só que aqui há um descolamento da realidade, afinal tudo tem limite, nossos recursos são finitos, seja a natureza, a matéria prima, os trabalhadores da empresa, tudo tem um fim. Uma hora acaba, o mercado perde força da área X ou Y e outra demanda entra em destaque.
Já o último pilar: Obsessão com a linha de frente, traz uma carga de ansiedade só de ler. Tem que ser um empreendedor obsessivo, como se isso fosse bom e não adoecesse a mente. Nesse pilar estão: Experimentação incessante; empoderamento da linha de frente e Customer advocacy. Aqui jaz o puro suco de escritório. No primeiro, a experimentação incessante é um jeito de dizer que você precisa “experimentar” novos modelos, novos produtos, novos serviços, no sentido de tentar se manter relevante e ter uma linha de frente forte. O que talvez faça mais sentido para quem lida com produto, porque o cliente não tem tanta recorrência, então você precisa ter sempre algo novo para chamar a atenção. Isso funciona até certo ponto e é por isso que muitos negócios fecham, porque só querem o seu dinheiro, não necessariamente tem qualidade, o que importa é a quantidade.
Agora o segundo item mostra que a palavra empoderamento foi destruída, serve para qualquer porcaria e não era pra ser assim. Empoderamento da linha de frente. O que te parece? É mais do mesmo que a experimentação incessante, só que dito de outro jeito, para parecer que é novo, com uma pitada de objetificação das pessoas e humanização das coisas. Invertem os papeis, as coisas (produtos/serviços) são empoderados, e você que é um ser vivo se torna um objeto. Para finalizar tem que ter uma palavra em inglês: Customer advocacy. Sabe o que é isso? O que deveria ser relacionamento com o cliente, para fidelizar o cliente, não porque seu produto é o melhor, mas porque o seu negócio pode realmente ajudar o cliente. Mas a tradução de customer advocacy seria algo como “defesa do cliente”. É um incentivo para um comportamento de defesa da marca, um exemplo bom para isso são as pessoas que só consomem Apple, para essas pessoas as outras marcas são inferiores, mesmo que a produção seja toda feita na China. E se você esteve na internet nesses últimos meses viu que produtores da China começaram a expor grandes marcas e grifes, que cobram preços absurdos em bolsas e outros itens, só porque é da marca ABC. Mesmo assim, essas grandes marcas se mantêm, ninguém fechou as portas, porque não são meras empresas familiares, de quem precisou empreender para sobreviver, já são marcas renomadas, verdadeiros impérios.
Enfim, o que podemos aprender com tudo isso? Que a realidade de quem realmente trabalha e põe a mão na massa todos os dias, seja CLT, PJ ou informal, nós não somos o público desse livro, nós vendemos nossa força de trabalho, não é como se tivéssemos milhões no banco só para investir em um novo negócio. Mesmo que pegue um empréstimo para abrir sua lojinha, nunca teremos a mesma oportunidade que os grandes investidores tem. Afinal, é a nossa força que realmente produz toda a riqueza desse mundo, investir e esperar que os outros façam é mero comportamento parasitário.