A história dos povos indígenas no Brasil ganha uma nova perspectiva com o projeto As Cartas dos Povos Indígenas ao Brasil, que reúne e analisa mais de 1,1 mil cartas escritas por indígenas desde o século 17. Esses documentos, endereçados a autoridades, organizações e lideranças, revelam não apenas a luta por direitos, mas também a visão dos povos originários sobre o que significa viver e morrer sendo indígena no Brasil. A pesquisa, coordenada pela professora Suzane Lima Costa, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e aprofundada na tese de doutorado de Rafael Xucuru-Kariri, ganhou destaque ao receber o Prêmio Capes de Tese 2024, um dos mais importantes reconhecimentos acadêmicos do país.
Rafael Xucuru-Kariri, doutor em ciências sociais pela UFBA e primeiro indígena a receber o Grande Prêmio Lélia Gonzalez, analisou cartas escritas entre 1972 e 2022. Seu trabalho, intitulado Retomar o Brasil: um estudo das cartas escritas pelos povos indígenas nos últimos 50 anos, mapeia quem escreve, para quem são destinadas as cartas, os assuntos abordados e o contexto de sua produção. A pesquisa derruba o mito de que os indígenas não têm produção escrita, mostrando que, ao contrário, eles têm uma tradição rica e profunda de escrita, que reflete suas interpretações do Brasil como intelectuais, filósofos e pensadores.
“Essas cartas mostram como a história indígena, e portanto a história brasileira, é muito rica e diferente daquilo que aprendemos nos livros didáticos”, afirma Xucuru-Kariri. Ele destaca que as cartas servem para trazer ao debate público temas muitas vezes ignorados, como a luta pela terra, a violência, a saúde e a educação. Além disso, elas expõem as visões de mundo, os pensamentos e os sentimentos dos povos indígenas, que muitas vezes são silenciados na narrativa oficial do país.
Um dos documentos analisados na tese é a carta aberta escrita por Megaron Txucarramãe, líder Kayapó, em 1980, durante a ditadura militar. Na carta, Megaron denuncia os impactos das estradas construídas pelo governo, que levaram doenças como o sarampo às aldeias, resultando em mortes. “Para o branco, a estrada é muito boa, mas para nós não foi muito boa, porque pela estrada chega doença para o índio”, escreveu. Esse tipo de crítica continua relevante hoje, como mostram as cartas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) durante a pandemia de covid-19, que exigiram a inclusão dos povos indígenas no grupo prioritário de vacinação.
A luta pela terra é outro tema recorrente nas cartas. Em 1975, a líder indígena Andila Kaingang escreveu ao então presidente Ernesto Geisel: “A invasão de nossas terras para o vosso povo tem significado simplesmente um problema jurídico, mas para o meu povo não. São problemas que nós Kaingang sentimos como feridas que nos atormentam no mais alto dos sentimentos”. A violência contra os povos indígenas também é denunciada, como no caso das mulheres da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, que em 2004 relataram um ataque armado em que suas casas foram incendiadas.
As cartas também refletem as mudanças tecnológicas e sociais ao longo dos anos. Com o aumento da alfabetização e o avanço da tecnologia, mais indígenas passaram a escrever e a enviar cartas digitalizadas. Xucuru-Kariri, que integra a primeira geração de indígenas alfabetizados em massa no Brasil, conta que ele mesmo redigiu muitas cartas durante sua infância, ajudando lideranças a formalizar demandas por saúde, educação e direitos territoriais. “Nossa casa era sempre rodeada por muitas lideranças discutindo o movimento indígena. Eu redigia muitas dessas cartas, com demandas sobre postos de saúde, escolas e outras necessidades das aldeias”, relembra.
A tese de Xucuru-Kariri também destaca a importância das cartas na reconfiguração do espaço público. “Elas criam uma ressonância na sociedade brasileira, para discutir mais e agir em favor dos povos indígenas. Para dentro, esses povos se reorganizam a partir dessas cartas”, explica. Atualmente, como servidor público na UFBA, ele participou da criação da Licenciatura Intercultural Indígena e se tornou um dos destinatários desses documentos. “Hoje em dia, eu posso dizer que, sem saber, passei uma vida entre cartas. Continuo vivendo minha vida entre essas cartas”, diz.
O Prêmio Capes de Tese, considerado o “Oscar da Ciência Brasileira”, reconhece anualmente os melhores trabalhos de doutorado defendidos no país. Em 2024, além de Xucuru-Kariri, foram premiadas Ana Paula Zapelini de Melo, doutora em Ciência de Alimentos pela UFSC, e Gabriela Dias Noske, doutora em Física pela USP. A premiação reforça a relevância da pesquisa indígena e a necessidade de ampliar o espaço para vozes que historicamente foram marginalizadas.
As cartas dos povos indígenas ao Brasil não são apenas documentos históricos, mas ferramentas de resistência e luta por direitos. Elas mostram que, apesar dos avanços, muitos desafios persistem, como a violência, a falta de acesso à saúde e a luta pela demarcação de terras. Ao dar visibilidade a essas vozes, o projeto As Cartas dos Povos Indígenas ao Brasil contribui para reescrever a história do país, incluindo as perspectivas daqueles que sempre estiveram aqui, mas muitas vezes foram silenciados.
As cartas estão disponíveis no site: https://cartasindigenasaobrasil.com.br/