Para mim, como mulher negra, o Dia da Consciência Negra representa um momento de reflexão e resistência. É um dia, e sobretudo um mês, que nos permite trazer à tona questões estruturais que permeiam a sociedade brasileira, marcada pelo racismo que ainda organiza as desigualdades. Não é apenas sobre lembrar Zumbi dos Palmares, mas sobre reconhecer como o racismo estrutura as nossas relações e oportunidades, relegando a população negra a condições de vulnerabilidade em várias áreas: saúde, educação, mercado de trabalho e segurança.
Enquanto mulher negra, entendo que essa data tem um significado ainda mais profundo, porque mesmo dentro das opressões do racismo, a mulher negra ocupa a base da pirâmide social. Somos as mais afetadas pela falta de direitos, pelo desemprego, pela violência e pelo racismo estrutural. No entanto, somos também as que mais lutam, resistem e transformam. A mulher negra é força motriz em movimentos sociais, culturais e políticos, resgatando e preservando nossa ancestralidade e, ao mesmo tempo, abrindo caminhos para mudanças.
É importante que essa discussão ultrapasse o 20 de novembro e dure o ano inteiro, porque o racismo não descansa. Ainda assim, este dia simboliza a necessidade de amplificar essas pautas e de reconhecer a potência da mulher negra, que apesar de ser a mais vulnerabilizada, é também a que mais organiza e movimenta transformações. É pelas mãos dessas mulheres que mudanças significativas acontecem, preservando a cultura, valorizando nossas identidades e lutando por um Brasil mais justo e igualitário.
O CAPIXABA: Como essa data se insere na sua trajetória de vida e luta?
Para mim, essa data, o Dia da Consciência Negra, se insere profundamente na minha trajetória de vida e luta porque representa a conexão com minha ancestralidade e a valorização de toda a herança que carrego. Apesar de me autodeclarar mulher negra, minha vivência pessoal foi marcada por um processo de descobertas e pela construção dessa identidade. Vindo de uma história familiar que mistura origens negras, indígenas e europeias, reconheço em mim a síntese de um Brasil forjado com muita dor, violência e resistência.
Embora nunca tenha sofrido preconceito direto pela minha cor e frequentemente seja vista como uma mulher branca por outros, minha autodeclaração como mulher negra é um ato de reconhecimento e respeito às lutas que me antecedem e me impulsionam. Esse reconhecimento não é apenas sobre a cor da pele, mas sobre honrar as histórias, tradições e vivências que moldam a força e a resiliência das mulheres negras que vieram antes de mim. São essas histórias que me inspiram a compreender, valorizar e lutar ao lado dessas mulheres incríveis.
Minha trajetória pessoal ganhou novas camadas em 2022, quando participei de uma ocupação que trouxe à tona a força e a tradição das mulheres negras. Foi um momento marcante, que me conectou a essa história de resistência e me mostrou como essas mulheres têm sido o alicerce de movimentos, tradições e mudanças. Desde então, tenho buscado me aproximar mais dessa vivência, aprendendo e ressignificando minha própria caminhada.
Hoje, o Dia da Consciência Negra me lembra da força da mulher negra: destemida, empreendedora, questionadora e transformadora. Essas mulheres me inspiram profundamente e me ajudam a construir a mulher que sou e quero continuar sendo, carregando comigo a herança, a força e a responsabilidade de lutar por um Brasil mais justo e igualitário.
O CAPIXABA: Como você avalia a visibilidade da luta da mulher negra no Brasil? Quais os principais desafios para que essa luta ganhe mais força?
Avalio que a visibilidade da luta da mulher negra no Brasil está em um processo de crescimento, ainda que desafiador. Temos visto, pouco a pouco, mulheres negras ocupando espaços de poder, o que é inegável. Hoje, essa representatividade já se manifesta na política, nas empresas, na mídia e na internet, onde a voz da mulher negra tem ganhado alcance. Isso facilita, ou ao menos diminui as barreiras, para que a presença e as narrativas dessas mulheres sejam reconhecidas. No entanto, o caminho ainda é longo.
Os desafios permanecem, e a luta precisa de mais políticas públicas específicas, pensadas com um olhar atento às particularidades das mulheres negras. É essencial que essas políticas contemplem áreas fundamentais como educação, saúde, inclusão produtiva e acolhimento às vítimas de violência, sendo que, infelizmente, a maioria das mulheres violentadas no Brasil são negras. Para avançar, é necessário compreender que mulheres negras e brancas enfrentam trajetórias e necessidades distintas. Essa diferença deve ser considerada ao criar estratégias de reparação e equidade.
Historicamente, as mulheres negras sempre desempenharam papéis fundamentais no suporte às famílias e à sociedade, muitas vezes abrindo caminho para que mulheres brancas pudessem ocupar espaços de poder. Esse passado precisa ser reconhecido e, mais do que isso, reparado. As políticas públicas devem incluir mecanismos que assegurem um cuidado diferenciado e efetivo para mulheres negras, promovendo sua equiparação em condições de vida, oportunidades e direitos.
Embora estejamos avançando, ainda há muito a ser feito. É essencial que gestores públicos e a sociedade como um todo adotem uma abordagem específica e comprometida com a equidade racial e de gênero, garantindo que a luta da mulher negra ganhe a força e a visibilidade que merece.
O CAPIXABA: De que forma o Dia da Consciência Negra pode contribuir para o empoderamento das mulheres negras?
O Dia da Consciência Negra e o Novembro Negro podem ser poderosos instrumentos de empoderamento das mulheres negras, pois oferecem uma plataforma para dar visibilidade à sua história, cultura e contribuições essenciais para a sociedade. Para mim, esse mês não deve apenas abordar os desafios e dificuldades enfrentados pelas mulheres negras, mas também servir como uma vitrine para mostrar sua potência e o que elas realizam nas mais diversas áreas, como arte, música, culinária, dança, e também em espaços mais formais, como a academia, a política e o serviço público.
A cultura brasileira, em grande parte, é moldada pelas tradições das mulheres negras. Elas são fundamentais em nossa música, artesanato e culinária, e é importante que esse mês seja voltado para destacar e potencializar essas contribuições. Além disso, ele deve ser uma oportunidade para fortalecer as mulheres negras em espaços de poder, como no legislativo e executivo, mostrando que elas também são gestoras, políticas e líderes.
Porém, também é preciso olhar para a realidade das crianças e jovens negros, que muitas vezes não têm as condições necessárias para acessar oportunidades e seguem expostos à violência e à marginalização. Para que o empoderamento seja real, as políticas públicas precisam ser mais eficazes, garantindo acesso à educação, saúde e proteção para essas crianças e jovens. O Novembro Negro deve também ser um chamado para o reconhecimento dessa necessidade e para a implementação de ações que deem condições concretas para essas crianças e adolescentes negros se verem como protagonistas da sua própria história, como agentes de transformação.
Nesse sentido, o mês de novembro não só deve reconhecer as dificuldades enfrentadas pelas mulheres negras, mas também proporcionar um espaço de visibilidade e valorização de sua trajetória e ações. Ao fazê-lo, ele contribui para que as mulheres negras tenham as mesmas condições de se projetar e conquistar os espaços de poder, com equidade, assim como os homens negros.
O CAPIXABA: A ministra de igualdade racial é uma mulher, o que você tem a dizer sobre isso?
Ter Anielle Franco como ministra da Igualdade Racial, assim como Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente e outras mulheres negras ocupando posições de destaque, é algo que me alegra profundamente. É uma reparação histórica e uma representatividade essencial. Contudo, mesmo dentro de um governo de esquerda, ainda percebemos que os espaços de poder são majoritariamente ocupados por homens, o que mostra que a caminhada, apesar de avançar, ainda é feita em passos pequenos.
Precisamos continuar lutando por paridade de gênero e raça em cargos de decisão, garantindo que mulheres e homens negros ocupem posições de poder de forma proporcional e justa. Essa busca vai além de celebrar as conquistas; é sobre alargar os horizontes e criar um ambiente político e institucional realmente equitativo, onde políticas públicas sejam criadas e efetivadas para atender às necessidades da população negra, especialmente das mulheres negras, que enfrentam os maiores desafios de acesso e garantia de direitos.
É importante reconhecer que estamos avançando, mas também é fundamental exigir mais. Precisamos que esses passos sejam acompanhados por conquistas reais e pela manutenção de direitos já conquistados. A representatividade importa, mas deve vir acompanhada de mudanças estruturais que impactem diretamente a vida das mulheres negras e da população negra como um todo. Que esses espaços de poder se tornem cada vez mais diversos e inclusivos, não apenas para celebrar, mas para transformar.