Sentimentos são íntimos e exclusivamente humanos. Concorda?
Porém, uma realidade preocupante é posta à tona no artigo “Análise de Sentimentos: Da Psicométrica à Psicopolítica” de Felipe Melhado e Jean Martin Rabot: o sentimento tornou-se produto da sociedade capitalista atual.
Neste cenário, empresas de comunicação utilizam uma ferramenta intitulada Análise de Sentimentos (AS) para mapear as emoções dos usuários e vendê-las para corporações financeiras ou organizações políticas, que usam as informações para tomarem decisões estratégicas – e lucrativas.
Defende-se aqui a necessidade de olharmos para a aplicação atual desta técnica de forma crítica, entendo-a não como uma prática isolada, mas sim como parte de um sistema que busca mercantilizar tudo o que for possível – desde que gere lucro.
Como a ferramenta funciona?
A Análise de Sentimentos é uma ferramenta de vigilância emocional, especializada na captura de dados sobre as emoções (emotional data) que vem crescendo desde o início dos anos 2000. Sua expansão e sucesso se deve principalmente à disseminação de grandes quantidades de dados, e a consequente visão da importância das métricas para tomadas de decisões.
Para se ter ideia de uma aplicação em crescimento, até o ano de 2012, 60 startups de nálise de Sentimentos (AS) faziam-se presentes nos Estados Unidos.
Quanto ao funcionamento técnico, ela opera de forma prática para identificar estados afetivos polarizados (positivo ou negativo) em textos.
A ordem é a seguinte:
1. Captura dos dados;
2. Formatação e padronização dos textos captados;
3. Classificação dos sentimentos presentes nos textos.
A etapa 3 é parte fundamental da análise, pois ela utiliza uma base de dados com textos que já foram categorizados emocionalmente, e, com base na classificação anterior, rotula os textos de maneira automatizada.
Também é possível classificar os textos a partir de uma base de dados que funciona como um dicionário. Neste caso, por meio da rotulação de palavras a seu correspondente emocional, elas podem ser atribuídas a sentimentos específicos na hora da coleta. Resumidamente, a AS funciona como uma coletora de dados que identifica padrões afetivos em textos.
Análise de Sentimentos: Psicométrica ou Psicopolítica?
Devido a capacidade da Análise de Sentimentos coletar dados acerca da psique, ela pode ser definida como uma ferramenta psicométrica, entendendo a psicometria enquanto ramo da psicologia capaz de medir a subjetividade. Mas é importante considerar que a AS vai muito além da simples medição das emoções.
Os dados são utilizados como informações valiosas para poderes organizados que utilizam-no de forma a produzir afetos estrategicamente. Grandes empresas de tecnologia e comunicação vendem dados às organizações interessadas em identificar o comportamento dos indivíduos e, consequentemente, induzi-los a uma ação – seja comprar determinado produto ou votar em algum político específico.
Em maio de 2017, o jornal The Australian publicou detalhes acerca do documento vazado que revelava que o Facebook era capaz de mapear adolescentes que se sentiam inseguros. No documento, a rede social fez essas afirmações para um anunciante, o que demonstra a situação dos sentimentos humanos enquanto commodities na sociedade atual.
As captáveis emoções dos usuários são vendidas para corporações que tratam os emotional data como um trunfo para aumentarem suas vendas ou conquistarem outro objetivo, a depender da corporação. Isso porque, tendo o conhecimento da tristeza do usuário que também é o seu potencial cliente (lead), a empresa pode oferecer o seu produto como solução para diminuir o sentimento ruim do internauta.
Além disso, também pode oferecer um design de plataforma e uma linguagem que induza a produção de novos afetos ou até mesmo reforçar o sentimento identificado. Portanto, a recolha de dados gerados a partir dos processos comunicativos em ambiente digital toca em outro tópico: a psicopolítica.
Para além da psicométrica
Para entender a lógica da coleta e produção de afetos enquanto prática psicopolítica, é importante considerar que a Análise de Sentimentos é fundamental para o controle dos afetos. Os internautas são sutilmente induzidos a se expressarem na internet, dando às gigantes da tecnologia e demais corporações matéria suficiente para exercer o controle afetivo nas pessoas.
Dessa forma, a psicopolítica acontece na medida em que a produção dos afetos se tornam estratégias de controle da mente dos indivíduos. Ou seja: os sentimentos humanos não são apenas coletados (psicométrica), mas também instrumentalizados (psicopolítica).
A dominação da psique humana na digitalidade é possível por meio da ideia ilusória de liberdade que os indivíduos consideram ter nas plataformas digitais. Por serem livres para publicarem e se expressarem abertamente na internet, a coerção quase passa despercebida.
Porém, é exatamente o excesso de informações que viabiliza o controle, já que a manipulação dos afetos é possibilitada pela coleta de textos.
Logo, já que a Análise de Sentimentos se estende à influência no inconsciente individual e coletivo, é essencial saber qual o tipo de sociedade que produziu esta excitação do ser humano contemporâneo em publicar e tornar-se visível.
Sou visto, logo existo.
De “Penso, logo existo”, para “Sou visto, logo existo”, foram séculos de diferença.
Mas ambas tocam em uma questão: o que define a existência do ser humano. Logicamente, a visibilidade não garante a existência biológica direta, mas nos dias atuais, interfere na existência cívico-cultural do indivíduo. Isso porque as redes sociais se consolidaram como grande espaço de troca comunicativa e, se você não está lá, não é visto e, por conseguinte: não existe no imaginário cotidiano das pessoas.
De forma geral, esta nova troca interativa pautada na visibilidade intensifica a visão de liberdade acerca do se expressar abertamente nas plataformas digitais.
Mas e quando a minha prática de liberdade gera informações que serão manipuladas? Estaria eu exercendo uma liberdade plena? Portanto, cabe a nós vigiarmos este modelo de sociedade – segundo Zygmunt Bauman, sociedade confessional – que nos coerce sutilmente a eliminar as barreiras entre o público e o privado e clamar por atenção.
Será que precisamos tanto assim da validação do outro para existir?
Tudo vira mercadoria
Com base na leitura do artigo “Análise de Sentimentos: Da Psicométrica à Psicopolítica” de Felipe Melhado e Jean Martin Rabot, foi possível perceber que a contemporaneidade trouxe novas formas de relação e comunicação que complexifica nossa forma de estar no mundo e, consequentemente, a própria noção de controle e liberdade.
A ferramenta “Análise de Sentimentos” poderia se esgotar em uma função meramente descritiva, mas ao cair no palco da contemporaneidade foi utilizada como marcadora e manipuladora de emoções sem que nós percebêssemos. São as novas formas de controle: Elas entram na nossa casa, nos nossos aparelhos e pegam para si aquilo que em nós é mais privado: os sentimentos. Nessa configuração, até mesmo o afeto – abstrato, pouco compreendido e explicado no senso comum – torna-se mercadoria ‘cara’ ao sistema capitalista.
Portanto, pode-se concluir que a AS só passou da psicométrica à psicopolítica devido a lógica do capitalismo que privilegia ostensivamente o lucro e o ganho financeiro.
Se o sentimento humano é rentável ao poder ser vendido a corporações interessadas, ele inaugura-se como uma das mais importantes – e perigosas – commodities dos dias atuais.
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