Quando escreveu o Cânone em D, Johann Pachelbel não imaginou o sucesso que sua música faria nos séculos XX e XXI. Além de ser uma das mais tocadas em ocasiões como casamentos, essa bela peça pode ter servido de inspiração para a banda pop americana Maroon 5. Ao compararmos a estrutura tanto melódica quanto harmônica de Memories percebemos que os seus acordes e sua melodia inicial são quase idênticos, conforme mostra o vídeo abaixo.
Como o Cânone em D de Pachelbel é uma música muito conhecida do grande público, podemos aceitar a hipótese de que os autores de Memories foram traídos pelo seu inconsciente no momento da composição dessa canção. No entanto, a estrutura harmônica, ou seja, a sequência de acordes usados nesse hit é a mesma da obra de Pachelbel.
Muito conhecida e utilizada pelos compositores do período galante, os acordes dessas duas músicas faziam parte de uma estrutura conhecida como romanesca. Sem entrar em detalhes excessivamente técnicos, a romanesca é formada por uma sequência de acordes tão agradável que é usada até hoje em dia com uma pequena variação. O vídeo abaixo mostra o uso dessa variação nas últimas décadas.
Esse mesmo grupo, The Axis of Awesome, gravou um outro vídeo com uma canção intitulada How to write a Love Song (como escrever uma canção de amor) cuja letra descreve todas as partes de uma melodia romântica. O resultado é bastante divertido e, por que não dizer, educacional.
Diante dessas evidências, como fica a velha ideia do compositor como uma espécie de gênio inspirado quase divinamente?
Talvez seja hora de pararmos de alimentar essa ideia, pois ela nos faz confundir inspiração com a psicografia realizada pelos médiuns espíritas. Enquanto a primeira permite que o artista se expresse e coloque seu estilo, a última transforma o autor de uma obra em um mero transmissor de ideias de um ser que habita o além.
A ideia do gênio criativo absolutamente original é uma herança do romantismo e, portanto, relativamente recente em nossa história. Em todos os outros momentos da história da música, o compositor transpirava para escrever suas obras e muitas vezes aproveitava suas próprias ideias.
Nos tempos de Mozart e Bach, por exemplo, as músicas eram compostas por encomenda para serem tocadas em uma única ocasião. Sendo assim, é provável que qualquer um de nós tenha ouvido o Cânone em D mais vezes que o seu próprio autor.
De acordo com Thomas Edison “o sucesso é 1% de inspiração e 99% de transpiração”. Podemos pensar o mesmo quando o assunto é música. Podemos dizer que na criação artística e musical algo parecido aconteça. É preciso transpirar muito para que a inspiração chegue até nós.
Como aluno do bacharelado de Música, a entrega de pequenos exercícios também é resultado de muito trabalho que começa também durante a nossa escuta musical. Não basta respeitarmos determinadas fórmulas ou estruturas musicais, é preciso também buscarmos referências para que nossa obra soe como autenticamente nossa e não como se fosse uma repetição mecânica de procedimentos bem sucedidos.
Johann Sebastian Bach é considerado por muitos o maior gênio musical de todos os tempos. Por isso muitos compositores procuram estudar os seus processos composicionais. No Brasil, tanto Heitor Villa-Lobos quanto Baden Powell e Vinícius de Moraes se aproveitaram da Oferenda Musical, BWV 1079 de Bach para compor, respectivamente, o Prelúdio das Bachianas Brasileiras nº 4 e Samba em Prelúdio. Compare os inícios das três músicas.
Pode parecer decepcionante constatar que a fonte de inspiração musical não seja algo tão mágico, mas o resultado do trabalho desses artistas continua a ser belo e genial. Podemos dizer que os compositores, de uma forma ou outra, são e continuarão a ser pessoas inspiradas