“Uma das grandes críticas que sempre recebi é que meu trabalho não é literatura, porque é acessível demais”, diz Rupi Kaur, confortável numa poltrona de hotel em São Paulo. “Isso me confundia. Na minha cultura, acessibilidade é algo tão bonito.”
A geração de seus pais, continua a indiana, foi a primeira de sua família que aprendeu a ler, o que não impedia poemas de serem passados ao longo da árvore genealógica. “Na minha comunidade panjabi, poesia sempre foi algo que qualquer um podia fazer.”
Hoje, nenhuma poeta viva tem o alcance de Rupi Kaur —que depois de estourar nas redes sociais e publicar “Outros Jeitos de Usar a Boca” de forma independente, já vendeu 11 milhões de livros, ficou mais de cem semanas na lista de best-sellers do New York Times e visita o Brasil pela primeira vez numa turnê mundial em que transforma seus textos em performances ao vivo.
Por aqui, ela já vendeu 600 mil exemplares de seus três livros, algo excepcional para os parâmetros do mercado. Quando o repórter pergunta o que ela acha que toca tanto o público brasileiro, ela busca uma inesperada resposta na política.
“Meus livros saíram num momento em que o país, talvez por causa do último presidente, vivia muita animosidade contra as mulheres. Quando Bolsonaro ganhou, meus leitores brasileiros enchiam meus comentários dizendo como estavam machucados, assustados pelo que aconteceria com mulheres e minorias.”
Em seguida, ela quebra a seriedade. “Além disso, os brasileiros são muito emocionados, e eu sou assim também.”
Impressiona pensar que uma autora que surgiu escrevendo que repetia o mantra “eu não sou nada” e que abre um poema dizendo que “deixar a barriga da minha mãe vazia/ foi meu primeiro ato de desaparecimento” hoje se coloque diante de grandes auditórios, como o do Memorial da América Latina neste sábado.
“Subir no palco ia contra todos os meus traços de personalidade. Eu era dolorosamente tímida, tão insegura”, lembra. “Então cheguei ao fundo do poço e senti uma força maior segurar na minha mão e me empurrar no palco. Quando me vi de frente ao microfone, foi libertador. Senti que, pela primeira vez na minha vida, as pessoas estavam me ouvindo.”
“Outros Jeitos de Usar a Boca”, seu livro de estreia, foi escrito num momento em que a escritora estava no ápice de sua vulnerabilidade. Estava com cerca de 19 anos —hoje tem 30. “Eu era uma menina tão diferente. Lembro de ter precisado viver um luto por essa garota.”
O livro que ela publica agora, com lançamento presencial em São Paulo na próxima segunda, é todo voltado a ajudar suas leitoras a percorrer caminhos parecidos com o dela —o uso do gênero feminino aqui não é ocasional, já que o livro é todo dirigido a elas por decisão editorial da tradução.
Na obra, ela fala sobre ter sofrido com relacionamentos corrosivos e abuso sexual, algo que vitima principalmente meninas. “Cura pelas Palavras”, como o nome adianta, quer ensinar como pode ser terapêutico pôr as próprias emoções no papel, partindo do princípio de que todo mundo é criativo, sem exceção.
Menos que um manual de como ser Rupi Kaur, o livro se monta como um caderno de anotações, cheio de propostas de exercícios e folhas em branco. “Deixe que sua artista interior saia para brincar”, instrui ela, deixando entrever muito de seu processo criativo. “Espero que as palavras que você vai escrever nas próximas páginas lhe mostrem a guerreira que você é.”
O livro se divide em quatro capítulos, intitulados “Feridas”, “Amores”, “Rupturas” e “Curas”, que são também um resumo surpreendentemente bom dos temas da obra literária de Kaur —se machucar, se transformar, sair por cima.
Seus poemas de fato mostram uma garota tateando suas possibilidades, fazendo um esforço que às vezes soa hercúleo para encontrar a própria voz depois de anos de silenciamento em relações daninhas.
Hoje, Kaur diz ter orgulho do que tem sido capaz de criar a partir da força e da autoconfiança, sentimentos que devem dar o tom do seu próximo livro. E tem sabido projetar sua imagem e lucrar com seu trabalho, sem a menor culpa.
Há quatro dias, ela postou para seus 4,5 milhões de seguidores no Instagram três novos poemas “para celebrar o Dia dos Namorados com a Swarovski”, marcando a página da rede de joias. “Mal posso esperar para vestir essa nova coleção no palco e brilhar!”, continuava a publicidade, que vinha acompanhada de um punhado de poemas curtos no espaço dedicado às fotos.
Essa foi sua primeira colaboração com uma marca, que aceitou por ser uma fã da Swarovski “desde que eles lançaram este brinco aqui”, diz a poeta enquanto se inclina e mostra ao repórter uma pedra enorme de cor esmeralda pendurada na orelha.
“Há uma ideia de que os poetas não podem ganhar dinheiro, de que escritores devem estar sempre lutando, vivendo uma vida difícil. Por quê? Acho isso tão antiquado. Se milhões estão lendo você e tendo uma experiência boa, por que o artista não pode explorar suas oportunidades e ser recompensado por seu trabalho?”
Ela diz que já foi por anos a artista faminta, que era “paga com visibilidade”, para usar um jargão que todo profissional da cultura abomina. Mas logo a realidade mudou —o que não quer dizer que agora ela vai se dedicar a publis, que ainda precisam ser inspiradoras para ela.
“Minha poeta interna é tão teimosa que, se for de outro jeito, a escrita se recusa a sair”, afirma a indiana —e de certa forma, seu empenho hoje é fazer com que outras pessoas também entrem em contato com as delas.
A escritora conta que, dias atrás, rolava as postagens sobre seu livro novo no Instagram e a viu a foto de uma jovem com a legenda “ah, meu Deus, eu nunca imaginei que ia ser poeta, mas acho que estou virando uma agora”.
É talvez o sorriso mais aberto que Rupi Kaur dá durante a entrevista.