O cuidado entrou em debate muito recentemente no cenário brasileiro e pode-se dizer que a maioria da população não sabe do que se trata, uma vez que a temática vem passando despercebida devido à divisão sexual do trabalho, que situa o cuidar enquanto espaço designado à mulher, aceito e naturalizado no Brasil. Ou seja, cuidar é coisa de mulher e ponto final. No entanto, a partir da temática escolhida pelo INEP para ser dissertada pelos estudantes que participaram do ENEM em 2023 – Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil –, o Governo Brasileiro, ao nosso ver, sinalizou simbolicamente que a questão do cuidar e ser cuidado estaria no cenário das políticas sociais brasileiras a partir de então. Com efeito, no dia seguinte à prova, o Governo anunciou que a construção da Política Nacional de Cuidados² estava em curso.
Este anúncio veio após um período de recrudescimento das políticas sociais experimentado no governo neoliberal de Jair Bolsonaro (2019-2022), acentuado pelos danos sociais e econômicos causados pela pandemia de Covid-19, quando ocorreram cortes significativos de recursos para o combate à vulnerabilidade social e à violência contra a mulher. Surge um novo cenário no enfrentamento às desigualdades sociais, sobretudo as de gênero, a partir da criação da Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (SNCF/MDS) e da Secretaria Nacional de Autonomia Econômica e Políticas de Cuidados do Ministério das Mulheres (SENAEC/MMulheres) em 2023. Desta forma, o terceiro Governo Lula (2023-2026) inaugura uma nova etapa no âmbito das políticas para as mulheres, ao abordar de forma inédita o cuidado enquanto direito universal conforme a proposta da Política Nacional de Cuidados (PL 2.762/2023) em tramitação nas instâncias legislativas, construída no terceiro mandato do então Presidente Lula, perpassada pelo contexto de capitalismo dependente e suas implicações na política social.
Vamos refletir sobre alguns dos pontos importantes que residem na PNC como seus objetivos que visam garantir o direito ao cuidar e ser cuidado, promover políticas públicas inclusivas e equitativas, combater desigualdades, reconhecer e redistribuir trabalho não remunerado e valorizar trabalhadores do cuidado. Importa apontar ainda que, embora a PNC ofereça soluções para a crise do cuidado, a política deve enfrentar desafios em um sistema que prioriza o lucro em detrimento da qualidade de vida dos trabalhadores e seu fetiche. Indo mais além, a PNC mostra-se contraditória ao assinalar o cuidado enquanto direito universal, mas, ao mesmo tempo, restringir seu alcance a grupos prioritários. Embora seja uma ação reparatória para corrigir desigualdades históricas, ao estabelecer prioridades dentre os grupos públicos alvo, a política limita o acesso universal ao cuidado. Além disso, a PNC elege uma gama de responsáveis por sua implementação e atribui à família, especialmente às mulheres, a responsabilidade pela proteção social, mantendo o caráter familista das políticas sociais brasileiras, o que supõe contradições, além de manter as desigualdades.
Nesta via, entendemos que o posicionamento do Governo em reconhecer o cuidado enquanto trabalho coloca em evidência o cuidado invisibilizado, precarizado e gratuito na dinâmica societária, o que contribui para a discussão em torno da socialização do cuidado e/ou sua remuneração. No entanto, na arena das lutas de classe, a sociedade brasileira precisa reconhecer que o trabalho de cuidar feito de forma gratuita pelas mulheres é fundamental para que a luta por sua remuneração seja viável e bem-sucedida. Desta forma, a PNC está em cena na pauta no Executivo que, apesar de inaugurar a discussão em torno do cuidar enquanto trabalho, da socialização do trabalho doméstico e da construção de uma nova ordem – a sociedade do cuidado –, mantém as características neoliberais conservadoras, na medida em que não propõe uma transformação societária de superação da ordem capitalista, mas pressupõe haver equilíbrio entre trabalho assalariado e trabalho doméstico realizado pelas mulheres. Destarte, reconhecemos a importância das políticas sociais no enfrentamento das expressões da questão social presentes na contradição entre os interesses capitalistas e o interesse da classe trabalhadora. Contudo, é necessário reconhecer que a valorização do trabalho de cuidar não é capaz de sozinha construir uma transformação estrutural na ordem social vigente. Assim, não podemos nos afastar da defesa intransigente e deveras urgente da perspectiva revolucionária geminada na teoria marxista com vistas à supressão das relações capitalistas.