Uma confusão de cabos e dois dispositivos do tamanho de latas de refrigerante saem da cabeça de Austin Beggin quando ele faz testes com uma equipe de pesquisadores que estudam implantes cerebrais para devolver funções a pessoas com paralisia.
Apesar do equipamento desajeitado, é nesses momentos que Beggin se sente mais livre. Ele ficou tetraplégico depois de sofrer um acidente de mergulho oito anos atrás, e o dispositivo cerebral capta os sinais elétricos gerados por seu cérebro quando ele pensa em mover seu braço. O dispositivo transmite esses sinais para punhos posicionados sobre os nervos principais de seu braço. Isso lhe permite fazer coisas que ele não conseguia fazer sozinho desde o acidente, como levantar um pretzel e colocar em sua boca.
“É a primeira vez que tenho a oportunidade ou já tive o privilégio e a bênção de pensar ‘quando quero abrir a mão, eu a abro’”, falou Beggin, 30. Dias como esses são sempre especiais para ele.
O trabalho realizado no Centro Cleveland de Estimulação Elétrica Funcional representa uma pesquisa de ponta no campo da interface cérebro-computador, conectando o cérebro ao braço para restaurar o movimento.
É uma área que Elon Musk quer ver avançar. Em apresentação recente, o empresário anunciou que implantes cerebrais criados por sua empresa Neuralink vão um dia ajudar a devolver a visão a cegos ou restaurar a funcionalidade corporal plena a pessoas como Beggin. Musk disse também que o dispositivo Neuralink possibilitará que qualquer pessoa use telefones e outras máquinas com novos níveis de rapidez e eficiência.
Mas os neurocientistas e também Beggin acham que será preciso esperar décadas para que tais avanços enormes se concretizem. Cientistas que receberam aprovação para testar esses dispositivos com humanos estão fazendo avanços milimétricos no sentido de restaurar a função normal na digitação, fala e movimentos limitados. Os pesquisadores avisam que a meta é muito mais difícil de alcançar e mais perigosa do que pode parecer. E ressalvam que talvez nunca seja possível alcançar as metas de Elon Musk, mesmo que valham a pena.
“É divertido pensar em cenários de ficção científica que descrevem como o mundo pode ser no futuro”, disse Paul Nuyujukian, professor de bioengenharia e neurocirurgia na Universidade Stanford que passou anos trabalhando sobre tecnologia semelhante. “Mas, considerando o ponto em que estamos hoje com a ciência, não está claro como esses cenários poderão se concretizar.”
Os cientistas presentes ao evento da Neuralink em 30 de novembro e os que o acompanharam online concordam que o que Musk exibiu foi um apanhado elegante de algumas das melhores ideias no campo, que já existe há décadas. Eles reconheceram que substituir aquele dispositivo do tamanho de uma lata de refrigerante saindo da cabeça do paciente seria de fato um avanço importante.
O protótipo de Neuralink eliminaria esse problema, mas apenas depois de os pacientes passarem por cirurgia robótica para abrir na cabeça um furo um pouco maior que uma moeda americana de 25 cents. Depois disso o robô tece 1.024 eletrodos em fios finos como teias de aranha na massa cinzenta do cérebro e deposita o dispositivo, que lembra um disco de hóquei no gelo, no buraco.
Com trabalho tão delicado, alguns pesquisadores da área receiam que um único passo em falso seja capaz de apagar anos de progresso.
“As mensagens que ouvimos da Neuralink frequentemente soam como atividade pouco confiável, não é?”, comentou Marcus Gerhardt, executivo-chefe da Blackrock Microsystems, empresa que trabalha no setor de interfaces cérebro-computador e pode tornar-se rival de Elon Musk.
Gerhardt disse que os neurocirurgiões que trabalham com sua companhia “morrem de medo todos os dias que alguma coisa terrível possa acontecer lá e afetar o resto do campo”.
Beggin é um de cerca de três dúzias de pessoas que tiveram um dispositivo chamado “matriz de Utah” implantado no cérebro para finalidades de pesquisa. O dispositivo inclui uma pequena grade de eletrodos mergulhados em seu cérebro na profundidade de apenas 2 milímetros. Ela é ligada a um portal montado sobre a cabeça deles e, passando por cabos, a outro computador.
A maioria dos dias que Beggin passa trabalhando com a equipe de pesquisas do Centro Cleveland envolvem olhar para um braço ou mão em movimento numa tela de computador e visualizar-se realizando o mesmo movimento. Isso permite aos cientistas detectar os padrões de ativação de neurônios em seu cérebro que dão lugar a cada movimento. Esses sinais são comunicados a um sistema que manipula oito nervos em seu braço para fazê-lo se mover, disse A. Bolu Ajiboye, professor de engenharia biomédica na Case Western Reserve University cuja equipe vem trabalhando com pacientes como Beggin.
O trabalho pode ser entediante, disse Beggin, mas para ele vale a pena devido aos dias em que consegue mexer sua mão. Sua experiência parte do trabalho feito com um voluntário anterior, também tetraplégico, que, usando o sistema, conseguiu levar uma garfada de purê de batatas até a boca.
Beggin não assistiu à apresentação da Neuralink na semana passada. Mas disse que ficou chocado ao ouvir que Musk aventou a ideia de “funcionalidade corporal total” para pessoas paralíticas.
Equipes acadêmicas em todo o país estão trabalhando em projetos que visam restaurar funções a pessoas com deficiências físicas ou doenças degenerativas. Cientistas estão trabalhando para mapear o centro visual do cérebro de modo que pontos de luz possam ser projetados para o olho da mente, para ajudar cegos a enxergar formas e letras. Outras equipes estão trabalhando para traduzir eletricidade neural em aplicativos de fala, controle de cursor, escrita à mão e digitação.
Várias empresas, incluindo a Neuralink, estão trabalhando sobre dispositivos plenamente implantáveis. Em Austin, Texas, a startup Paradromics está desenvolvendo um dispositivo que será colocado dentro do crânio. A Synchron, de Nova York, adota abordagem diferente, fazendo uma incisão no peito e empurrando um dispositivo no formato de tubo dentro de uma artéria próxima ao cérebro. Com isso, evitam-se os perigos da cirurgia cerebral, mas o sinal que o dispositivo capta do cérebro é consideravelmente mais fraco.
Apesar de a tecnologia ser tão promissora, cientistas dizem que ela tem muito pouco a oferecer ao consumidor comum, já que apenas se aproxima da rapidez e precisão do controle corporal de uma pessoa sadia.
Segundo Ajiboye, parece que isso está prestes a mudar. Ele comparou o campo à indústria de computadores em 1980, quando ela se encaminhava para uma revolução. “Acredito firmemente que estamos na mesma curva inicial, quando se trata de entender os mecanismos cerebrais”, ele disse.
Durante a apresentação da Neuralink, um vídeo mostrou um macaco chamado Pager supostamente usando um protótipo de implante em seu cérebro para mover um cursor por uma tela de computador. A equipe de Musk também mostrou o funcionamento interno do dispositivo, deixando impressionados alguns dos neurocientistas que assistiram ao evento.
Durante o evento Elon Musk anunciou que a Neuralink está buscando autorização da Food and Drug Administration (FDA) para testar o dispositivo em humanos. Ele deu um palpite: disse que o ensaio clínico começará em 2023.
Seria um avanço notável. Outros cientistas já testaram dispositivos sem fios em humanos, mas a Neuralink construiu um chip menor, mais veloz e potencialmente muito mais potente que qualquer coisa que o antecedeu.
“Basicamente, eles colheram muitas das melhores ideias dos melhores nomes nessa área e pagaram para juntar todas em um sistema novo”, disse Cristin Welle, neurocientista da Universidade do Colorado e ex-diretor de laboratório de implante cerebral da FDA e consultor sobre dispositivos. “Acho isso empolgante. Resta a ver se conseguirão realmente superar todos os obstáculos técnicos para comprovar que o chip cerebral é seguro de fato.”
Se a FDA der o sinal verdade à Neuralink, é ela que decidirá quando o ensaio vai começar. A agência prestará muita atenção à durabilidade do dispositivo, dados os riscos e a viabilidade de um paciente fazer repetidas cirurgias cerebrais, disse Welle. Isso significa que os criadores do dispositivo terão que superar o desafio de operar componentes eletrônicos no ambiente úmido do cérebro. Eles também terão que comprovar que seu dispositivo de supercomputação não vai gerar calor nem corrente elétrica que danifique indevidamente o tecido cerebral delicado, ela disse.
Se e quando a Neuralink iniciar um teste em humanos, seria restrito a pessoas que têm necessidade real da tecnologia, provavelmente pessoas com lesões da espinha ou outras formas de paralisia.