Em 1964, num esforço para acabar com sua imagem de reduto privilegiado de famílias brancas ricas, a Wesleyan University contatou 400 estudantes secundaristas negros de todo o país para convencê-los a se inscrever.
A iniciativa resultou numa turma que ficaria conhecida como a turma de vanguarda da Wesleyan, com um estudante latino e 13 negros. Ela ajudou a definir o engajamento da instituição com a diversidade.
Hoje, quase 60 anos mais tarde, esse tipo de prática de recrutamento de estudantes enfrenta uma ameaça existencial.
Em processos abertos contra as universidades Harvard e da Carolina do Norte, a expectativa generalizada é que a Suprema Corte revogue ou reduza fortemente a ação afirmativa nas admissões de alunos no ensino superior.
Muitos especialistas em educação dizem que uma decisão dessa natureza pode não apenas mudar quem é aceito na faculdade, mas também prejudicar estratégias que as instituições vêm usando há anos para formar turmas diversas, incluindo programas letivos criados para atrair alunos de grupos raciais e étnicos específicos para bolsas de estudo, programas especiais (“honors programs”) e ingresso na universidade.
Esses cortes podem então levar as universidades a acabar com outras práticas de admissão que teriam historicamente beneficiado estudantes de alta renda. Algumas universidades já acabaram com a exigência de exames padronizados e a preferência dada a filhos de ex-alunos. Também há pressão para acabar com a decisão antecipada, que aceita candidatos antes do término do prazo geral de admissão.
Representantes de universidades avisam que não há como saber qual será a abrangência da decisão da Suprema Corte. Mas a decisão, prevista para junho, provavelmente terá impacto amplo sobre várias instituições, segundo Vern Granger, diretor de admissões da University of Connecticut.
“A maioria das pessoas está pensando no processo de admissão em instituições seletivas, mas estou prevendo que a decisão do Supremo terá alcance grande”, disse.
Abertas inicialmente em 2014 pelo grupo antiação afirmativa Estudantes por Admissões Justas, os processos contra Harvard e a Universidade da Carolina do Norte argumentaram que as universidades discriminam contra candidatos brancos e asiáticos quando dão preferência a estudantes negros, hispânicos e indígenas.
As universidades dizem que usam critérios de admissão que levam a raça em conta porque a diversidade é crítica para o aprendizado. Esse argumento foi recebido com ceticismo pela supermaioria conservadora da Suprema Corte numa audiência em outubro.
Pesquisas recentes sugerem que a maioria das pessoas pensa que as universidades não deveriam levar raça ou etnia em conta nas decisões sobre admissão de estudantes.
Se a Suprema Corte tomar a decisão prevista, disseram autoridades educacionais, as turmas que começarão na faculdade no outono de 2024 serão muito diferentes das atuais.
“Veremos uma queda na parcela de estudantes não brancos na universidade, antes de um novo aumento”, disse Angel B. Pérez, CEO da Associação Nacional de Orientação de Admissões Universitárias. “Vamos perder uma geração inteira.”
Granger prevê que a situação mude até mesmo nas faculdades públicas. Citando uma queda nas inscrições após proibições estaduais da ação afirmativa no Michigan e na Califórnia, ele disse que alguns estudantes de grupos subrepresentados podem simplesmente não tentar entrar na faculdade.
As instituições que mais provavelmente serão fortemente afetadas são as 200 faculdades e universidades vistas como “seletivas” –ou seja, que aceitam 50% ou menos dos candidatos. E para instituições menores, altamente seletivas, como a Wesleyan, o impacto sobre a cultura universitária pode ser especialmente perceptível: os professores nessas escolas dizem que suas turmas são menores e promovem interações entre grupos diversificados de estudantes.
Em agosto, um grupo de 33 dessas instituições apresentou um documento informativo à Suprema Corte. Algumas delas haviam formado estudantes negros antes mesmo da Guerra Civil americana.
“A probabilidade de candidatos negros receberam ofertas de admissão cairá para metade da dos estudantes brancos, e a porcentagem de estudantes negros que se matriculam cairá de 7,1% do corpo discente para 2,2%”, segundo o documento.
De acordo com Angel Pérez, a Suprema Corte pode impedir as faculdades de comprar listas de potenciais candidatos que enfoquem sua raça e etnia, uma prática comumente usada no recrutamento.
Os programas ditos “fly-in”, nos quais certos alunos têm suas despesas pagas para visitar universidades, também podem ser cortados, assim como os programas de bolsas de estudos criados para estudantes não brancos, sem os quais muitos desses estudantes não têm recursos para pagar pelos estudos.
Kenneth L. Marcus, que foi funcionário da educação no governo Trump, disse que muitas práticas de admissão de estudantes que beneficiam determinados grupos raciais podem já estar infringindo artigos da Lei dos Direitos Civis.
Para evitar contestações na justiça, muitos desses programas ampliam os critérios de admissão, por exemplo aceitando candidatos que são os primeiros de suas famílias a fazer uma faculdade. Mas, disse ele, mesmo com esses critérios, “os estudantes brancos de classe média seriam, de modo geral, excluídos desses programas por motivos raciais”.
A decisão da Suprema Corte pode esclarecer a legalidade desses programas, disse Marcus, hoje presidente do Centro Louis D. Brandeis de Direitos Humanos Perante a Lei.
Algumas instituições já adotaram iniciativas preventivas. Os exames padronizados, por exemplo, são criticados há muito tempo por prejudicar os estudantes pobres e os não brancos, em parte porque eles não têm acesso a cursos caros de preparo para os exames.
Agora as políticas de “exames são opcionais”, que cresceram exponencialmente durante a pandemia, estão se tornando a nova normalidade. Mais de 1.800 faculdades com cursos de quatro anos de duração dizem que não pedem mais os resultados dos exames SAT ou ACT —um dos requisitos para que o aluno seja admitido em uma universidade americana. E o número de estudantes que fazem os SAT caiu de quase 2,2 milhões no último ano do ensino médio de 2020 para 1,7 milhão em 2022.
Julie J. Park, professora na Universidade de Maryland, disse que alunos de baixa renda têm menos probabilidade de apresentar suas notas do SAT quando se candidatam a uma vaga na universidade.
“O fato de que metade dos estudantes negros e latinos estão dizendo ‘não quero apresentar minhas notas’ me revela alguma coisa”, disse Park. Segundo ela, pesquisas indicam que quando os exames são opcionais, isso tem um impacto pequeno, porém, positivo, sobre as matrículas de estudantes minoritários de comunidades mal servidas.
Alguns adversários da ação afirmativa argumentam que as preferências deveriam ser baseadas em classe socioeconômica e não em critérios raciais. Eles também se opuseram a considerações especiais que beneficiam os estudantes de alta renda.
Richard D. Kahlenberg, consultor que assessorou querelantes no processo movido pelo grupo Admissões Justas, disse que os programas de decisão antecipada podem estar vulneráveis. Esses programas atraem candidatos de alta renda, isso porque eles precisam se comprometer a estudar nessa faculdade, em muitos casos antes de terem a oportunidade de examinar pacotes de assistência financeira.
“É uma das desigualdades embutidas no sistema”, disse Kahlenberg, que defende a ação afirmativa baseada na classe socioeconômica.
Também os filhos de ex-alunos podem perder suas vantagens. A Universidade Tufts, em Medford, Massachusetts, estuda a possibilidade de eliminar essa vantagem. Isso a incluiria em um grupo reduzido de universidades altamente seletivas que pretendem acabar com a preferência dada a filhos de ex-alunos. O grupo inclui, entre outros, a universidade Johns Hopkins e o Amherst College.
Segundo Matthew L. McGann, o diretor de admissões do Amherst, a escola já vem fazendo planos para antecipar-se à decisão da Suprema Corte. “Não estamos esperando esse momento chegar.”