Vivemos em uma época em que quase todas as soluções estão a um clique de distância. A profundidade, a crítica e a criatividade no pensamento tornaram-se tarefas desafiadoras. Antes, refletir sobre problemas e elaborar ideias era parte da rotina; hoje, isso parece exigir energia mental em demasia. A sensação de cansaço tornou-se comum, mas será que estamos realmente mais cansados ou simplesmente desacostumados ao esforço mental?
Através das comodidades proporcionadas pela tecnologia, principalmente pela Inteligência Artificial (IA), surge uma questão: estamos terceirizando nossa capacidade de pensar? E isso poderia impactar nossa autonomia cognitiva?
O Desgaste Mental ao Pensar
Priscilla Brandi Godoy, neuropsicóloga do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, define este comportamento como offloading cognitivo. “É o ato de delegar funções mentais como memória e raciocínio para ferramentas externas. Estudos indicam que receber respostas diretamente da IA reduz a conectividade neural, afetando atenção, memória e funções executivas”, explica.
Com menos exigência, o cérebro trabalha menos e, como qualquer músculo não utilizado, pode se ‘enferrujar’. A longo prazo, isso pode prejudicar memória, linguagem e raciocínio, pois essas funções precisam de desafios para se manterem ativas. Sem uso, as conexões neurais se enfraquecem.
Um estudo recente do MIT confirma essas conclusões. A pesquisa examinou o impacto de ferramentas como inteligência artificial em 54 pessoas divididas em grupos usando ChatGPT, Google ou nenhum recurso externo.
Os resultados mostraram que aqueles que usaram IA apresentaram menor conectividade cerebral, capacidade reduzida de recordar informações e menor engajamento cognitivo, levantando preocupações sobre os custos educacionais e de aprendizado associados à dependência excessiva da IA, como a redução no pensamento crítico, criatividade e autonomia.
Indicativos de Menor Atividade Cognitiva
Segundo a especialista, o ‘desaprender’ não é definitivo. Ocorre uma diminuição na atividade elétrica, liberação de neurotransmissores e força sináptica, levando a uma densidade sináptica reduzida. Contudo, com estímulos frequentes e intencionais, é possível restaurar o pleno funcionamento dessas redes.
“É como se o cérebro estivesse em modo de espera, mas pode ser reativado desde que convocado para pensar.”
Além disso, o desconforto diante do esforço mental pode ser explicado. Há um conflito entre a eficiência e a necessidade de recriar redes cognitivas. A IA gera dopamina da facilidade, mas o cérebro, acostumado ao esforço, pode reagir com irritação ou exaustão.”
Os sinais de desuso cognitivo incluem dificuldade de lembrar atividades recentes, sensação de criatividade reduzida e ansiedade em resolver problemas sem ferramentas. Nos jovens e na Geração Z, o impacto pode ser maior, pois as funções cognitivas estão em desenvolvimento até cerca de 24 anos.
Pensar: Uma Ação de Resistência
Ricardo Marsili, especialista em IA, afirma: “O cérebro funciona como o corpo. Se deixamos de usar certos músculos, eles atrofiam. O mesmo acontece com a prática do pensamento reflexivo ou criativo.”
Ele observa como a inundação de estímulos rápidos, como notificações, nos condiciona a buscar dopamina fácil. Tarefas que exigem concentração se tornam intoleráveis. “Há um cansaço causado pela superficialidade; sabe-se um pouco de tudo, mas não há profundidade. Recebemos uma avalanche de informações sem processá-las, gerando exaustão.”
“Quanto mais terceirizamos o pensamento, mais dependentes nos tornamos e menos preparados para o inesperado.”
Revertendo a Situação
Para a neuropsicóloga, o problema não é a tecnologia, mas seu uso. “Podemos começar com tecnologia, mas mantendo o esforço humano. Por exemplo, escreva um texto e revise com IA. Pesquise com ela, mas analise e desenvolva o conteúdo por conta própria.”
Ricardo Marsili reforça a importância de preservar o tempo de qualidade. “Defina períodos para usar tecnologia e preserve momentos de concentração, tédio criativo e convívio real. A IA deve complementar, não substituir o pensamento.”
“Pensar não é apenas produzir respostas. Pensar é se posicionar no mundo e criar conexões genuínas. Em tempos de respostas prontas, desacelere e enfrente o esforço mental.”