Minha irmã mais velha é enfermeira e vive rodeada de histórias. Algumas trazem aquele aperto no peito e outras, sinceramente, um verdadeiro soco no estômago. Lembro que, na pandemia, ela nos ligava para contar alguns casos, sempre em lágrimas.
Durante um almoço em família, entre histórias e conversas soltas, ela relatou uma situação que vou compartilhar aqui.
Era um dia “normal” no hospital onde ela trabalha, daqueles que começam com uma fila infinita de rostos cansados. Um médico se aproxima de uma paciente: trinta e poucos anos. “Ela e sua família moram em um assentamento sem-terra. Está aqui no estado, em algum lugar”, disse minha irmã ao contar a história. Diagnóstico? Toxoplasmose e HIV. No primeiro diálogo, o doutor pergunta se ela sabe o que é isso. “Toxoplasmo-quê?” — Ela responde, com um ar genuinamente confuso. Ele explica tudo direitinho.
Quando o médico pergunta sobre HIV, ela faz aquele silêncio. Simplesmente não sabia o que era. “HIV? AIDS?” Nada. O médico chama a filha dela, uma moça de 19 anos. “Você sabe o que é AIDS?” E nada. A mesma expressão perdida do desconhecido, reforçando o abismo social que muitos de nós optam por não ver.
E, quando minha irmã chegou nesse ponto da história, posso jurar que vi nos olhos dela um misto de indignação e exaustão. Ela enfatizou como é desgastante, emocionalmente, conviver diariamente com situações absurdas como esta.
Essas histórias chegam como lembretes – em letras garrafais – de que a disparidade no Brasil não é apenas sobre renda, cor da pele ou oportunidades – embora tudo isso conte em uma soma muito triste. É sobre o invisível. É sobre viver na era da informação e haver, ainda, lugares neste país onde o conhecimento básico, essencial, não chegou. Onde explicações sobre o próprio corpo parecem coisas de outro mundo.
O que me dói é pensar que exista quem defenda ideias absurdas voltadas a derrotar projetos para educação, saúde pública básica e saneamento em áreas como estas. Gente que grita por “igualdade” em plenárias, mas ignora que igualdade começa no acesso ao básico. Informação salva mais vidas do que somos capazes de contar.
É nessas histórias que ficam os alertas. Que Brasil é esse onde uma mulher adulta e sua filha adolescente sequer sabem acessar a própria saúde? Não sabem identificar o que são doenças como AIDS e HIV? Quantos assentamentos como esse existem escondidos no mapa do “nem sei onde é”?
Espero por um futuro onde o básico não dependa de uma lista do SUS e muita sorte. Mas, enquanto isso, nós seguimos, contando essas histórias com a esperança de que, pelo menos, as pessoas parem e pensem: será que estamos fazendo algo real para mudar quem vive no invisível? Ou será que estamos apenas decorando o abismo social com flores?