Cresci nos anos 80, jogando videogame sempre que possível. Comecei com o Atari, depois Nintendinho, Master System, Game Gear, Mega Drive, Super NES, Nintendo 64, Playstation 2, Game Cube, Wii, PS3 e PS4. Uma diferença importante que eu notei entre os jogos que eu jogava na infância e os de hoje é que, atualmente, quase não existe o Game Over. Refletindo sobre o assunto, concluí que:
- O Game Over faz falta;
- A ausência do Game Over é sintoma de um fenômeno muito maior e mais preocupante na sociedade contemporânea.
Quando tinha 11 anos, eu jogava Master System, às vezes na casa de amigos, e tinha poucos jogos (uns 4 ou 5, normalmente). Quando saía um jogo novo, o mais normal era alugá-lo e ficar com ele durante o fim de semana. Por isso, havia o desafio de chegar ao final dos jogos antes de ter que devolver o cartucho à locadora. Ao mesmo tempo, alguns jogos eram muito cruéis: depois de o personagem morrer algumas vezes, a tela mostrava a expressão Game Over, todo o progresso era perdido e a única opção era recomeçar da primeira fase. Imagine a frustração…
Eu não sou adepto de quebrar controles, mas já vi acontecer algumas vezes. Normalmente, porém, as crianças simplesmente respiravam fundo e pegavam o controle pra começar novamente o jogo, dizendo “dessa vez, vai!”. E, realmente, as primeiras fases passavam a ser muito fáceis, com todos os desafios dominados. Lembro de jogar Sonic, do Master System, na casa do meu amigo Bisnaga. Quando conseguimos chegar ao final, continuamos jogando, por falta de opção. Alguns dias depois, a disputa era para ver quem chegava ao final mais rápido e acumulando mais vidas. Ou seja, o que no início era um desafio complexo acabou se tornando tão fácil que era necessário criar novas limitações, só para manter a graça do jogo.
… as crianças simplesmente respiravam fundo e pegavam o controle pra começar novamente o jogo, dizendo “dessa vez, vai!”
E o que isso tem a ver com educação? Muitas coisas. Tantas, na verdade, que a escola faria bem em analisar o fenômeno dos videogames:
- A ideia de que “a prática leva à perfeição” estava sendo demonstrada de maneira muito clara. Em pouco tempo, os jogadores percebiam como seu esforço levou a resultados melhores.
- Jogar ensinava a lidar com a frustração. Após tomar um Game Over, o jogador não tinha para quem chorar. Não adiantava reclamar de injustiça. O videogame, impassível, podia apenas oferecer uma nova oportunidade.
- Os erros eram ressignificados. Ao contrário da escola, em que cada erro costuma ser motivo de vergonha, nos jogos, eles eram parte indissociável do sucesso. Apenas depois de morrer algumas vezes o jogador entendia como passar por aquele obstáculo mais complicado. E, após terminar um jogo, ninguém se importava com o número de tentativas fracassadas anteriores.
Hoje, no entanto, muitas coisas mudaram. É indiscutível que os jogos modernos possuem uma profundidade muito maior, histórias bem mais imersivas e qualidade técnica incomparável à de 20 ou 30 anos atrás. No entanto, eles permitem driblar a frustração de um modo que os jogos antigos não permitiam.
Os jogos modernos permitem driblar a frustração de um modo que os jogos antigos não permitiam.
Pegue como exemplo um grande sucesso como a série Uncharted: há infinitos “continues”, ou seja, chances para o jogador tentar novamente. A cada morte, o progresso perdido é ínfimo, o que tira muito da frustração com a derrota. O mesmo vale para jogos como God of War, Batman (a série Arkham) ou The Last of Us, que podem ser encarados mais como narrativas interativas do que como desafios.
É claro que as desenvolvedoras mantiveram a dificuldade, mas em trilhas paralelas ao jogo: em todos os exemplos que eu citei, há desafios que podem ser completados, mas que, de modo geral, não impedem que o jogador veja o final da história. Logo, não é verdade que todos os jogos atuais eliminaram completamente a frustração: muitos deles deram meios para o jogador, se assim quiser, contornar os desafios que poderiam causar frustração.
Há outra classe de jogos, no entanto, que desafia a própria definição de “jogo”. Trata-se dos apps em que o único desafio é tocar a tela a cada 10, 20 ou 60 minutos, ganhando com isso dinheiro virtual que serve para deixar a tela mais bonita e ganhar mais dinheiro virtual. Esse tipo de atividade, presente nos chamados “jogos sociais”, elimina a frustração de falhar (não há nada em que o jogador possa errar) e cria um ciclo de recompensa extremamente viciante, em que o jogador é instigado a se manter jogando diariamente, para ganhar novas recompensas. Esse tipo de jogo também instiga o jogador a usar dinheiro real, para prosseguir mais rapidamente, e muitas pessoas perdem o controle a partir daí…
O fenômeno de eliminação da frustração não se restringe aos videogames: há muitas competições esportivas, por exemplo, em que são dadas apenas medalhas de participação, independente do resultado. Há escolas em que placares de jogos de futebol não são registrados, para que ninguém saia da partida com a sensação de derrota. Há até cursos universitários em que a nota máxima é garantida apenas pela presença nas aulas. Ou seja, parece haver uma campanha de amplo alcance para esconder das pessoas a possibilidade de derrota.
O fenômeno de eliminação da frustração não se restringe aos videogames.
A intenção pode até ser boa, mas os resultados são ruins. Ao impedir uma criança de sentir que falhou, a mensagem que se está passando é a de que erros são uma coisa tão terrível que é melhor não falar deles. Se as escolas não podem dar notas baixas, as partidas esportivas não têm placares e até os jogos mais populares exigem apenas que se toque na tela a cada uma hora, as pessoas crescem sem se preparar para o dia em que irão falhar. Quando esse dia chegar, elas simplesmente não sabem como agir, o que pode levar a todo tipo de consequência negativa.
minha geração teve acesso a uma forma lúdica de aprender a lidar com a frustração, e a geração atual perdeu esse recurso.
Não estou aqui advogando a volta do Atari 2600 e nem o abandono de jogos excelentes como Batman: Arkham Knight e The Last of Us. O que estou dizendo é que a minha geração teve acesso a uma forma lúdica de aprender a lidar com a frustração, e a geração atual perdeu esse recurso. As escolas e famílias, sabendo disso, deveriam buscar outras formas de levar esse aprendizado às crianças (além dos jogos de videogame antigos, jogos de tabuleiro modernos são boas opções).
A consequência de não desenvolver essa habilidade é ter milhões de crianças que crescem sob a falsa impressão de que tudo o que fizerem será bem sucedido e que não sabem, portanto, lidar com os inevitáveis fracassos ao longo do caminho. E todos sabemos o quanto isso é perigoso para a sociedade…