A história do Brasil é marcada por uma brutalidade que se reflete nas vidas das mulheres, especialmente as mulheres negras escravizadas que foram forçadas a engravidar em fazendas de reprodução. Essas mulheres eram tratadas como meros instrumentos de reprodução, sem qualquer autonomia sobre seus corpos. Recentemente li uma matéria do Brasil de Fato que revelava uma história invisibilizada: “Mulheres eram forçadas a engravidar em fazendas de reprodução de escravizados”. As mulheres eram submetidas a uma lógica cruel, onde a gravidez não era uma escolha, mas uma imposição. Elas eram forçadas a gerar escravizados, e seus bebês eram retirados delas logo após o nascimento, vendidos como mercadoria. Essa prática desumana negava a individualidade das mulheres e perpetuava um ciclo de opressão, mas será que muita coisa mudou?
Essa herança de controle sobre os corpos que gestam se manifesta de diversas formas, especialmente na luta por direitos reprodutivos, principalmente no tema sobre aborto legal. O direito ao aborto legal é uma das questões mais debatidas no Brasil, infelizmente não para debater soluções ou debater a emancipação dos corpos que gestam, mas sim para alimentar um lobby antiaborto, que é profundamente fundamentalista religioso e, em muitos casos, negacionista.
No Brasil, o aborto legal é previsto em lei em 3 situações: se a gravidez é decorrente de estupro; se a gravidez representar risco de vida à mulher; se for caso de anencefalia fetal (não formação do cérebro do feto). Contudo, utilizam-se de mecanismos burocráticos para impedir o aborto, visto que para acontecer é necessário o aval de um juiz, nos casos de estupro. Além dos casos onde o aborto foi aprovado e há abuso dos profissionais de saúde que tentam coagir a mulher, que geralmente é vítima de violência sexual, a não realizar o aborto.
Uma matéria da Revista AzMina trouxe dados importantíssimos sobre “Conselhos de medicina [que] atuam no lobby antiaborto”. Por sinal, a revista tem uma categoria só sobre aborto que vale a pena acompanhar se você também participa das lutas pelos direitos reprodutivos das mulheres.
Trago um dado dessa matéria que exemplifica bem quem são as reais vítimas do lobby antiaborto: “Em 2023, 54 mil meninas de até 14 anos foram vítimas de estupro, segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)”. Não suficiente, para escancarar que sempre querem controlar os corpos que gestam, em 2022 editaram uma cartilha do Ministério da Saúde para colocar que “todo aborto é crime”, e em 2024 o CFM Rio de Janeiro criou uma resolução para proibir “a indução de assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas decorrentes de estupro”, ou seja, a mulher, que geralmente é uma menina com menos de 14 anos, sofre violência sexual, engravida, não há formação do cérebro do feto e não pode abortar porque passou de 22 semanas de gestação. A resolução foi suspensa pelo STF, mas de tempos em tempos surgem novas tentativas de tirar o pouco direito que ainda temos.
Em um panorama geral, 55% das gestações não são planejadas, isso no Brasil conforme pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. Mas o assustador é que dessas gestações, 500 mil passam por abortos clandestinos (Pesquisa Nacional do Aborto). Desejar ou não ter filhos não isenta que a gravidez pode ser detrimento de violência, que a busca pela clandestinidade é uma solução para onde o Estado falhou, ou seja, aborto é uma questão de saúde pública.
Assim como mulheres negras escravizadas eram forçadas a engravidar, hoje ainda tentam fazer a mesma coisa. A proporção de abortos é maior entre mulheres pretas, pardas e indígenas, sendo 46% a probabilidade de mulheres negras fazerem aborto, da renda predominante entre mulheres que abortam no Brasil ser de até 1 salário mínimo, de 52% das mulheres que abortaram ter 19 anos ou menos e de uma entre cinco mulheres abortarem duas vezes.
No fim das contas, a luta por direitos reprodutivos é uma luta pela emancipação feminina e pelos corpos que gestam. Nossos corpos não são mercadoria e deveríamos ter poder de decidir sobre nossos próprios corpos, ao invés de homens brancos parlamentares decidirem quem deve ou não gestar. A religião nesse debate serve para distorcer a percepção pública por um moralismo que nada tem haver com vida, mas sim com morte e opressão.
O controle sobre a reprodução é uma forma de controle social e econômico, não é atoa que as mulheres e meninas que buscam aborto são predominantemente das classes econômicas mais baixas, que recebem até 1 salário mínimo, isso é um recorte para perpetuar desigualdades de gênero e raça.
Ainda se o debate fosse para prevenção da violência sexual, principalmente para prevenir violência sexual de vulnerável, teríamos que falar da temida Educação Sexual, que seria ensinar para crianças que fulano não pode tocar seu corpo assim, ou que fosse para ensinar adolescentes como funcionam os hormônios e porque seus corpos estão mudando. Porém conscientização e prevenção não é foco do lobby antiaborto e muito menos de quem defende esses ideais fundamentalistas religiosos, afinal a ignorância e a falta de informação é uma ferramenta essencial para oprimir.
Essa opressão é uma realidade que só pesa nos ombros das mulheres, das meninas e das pessoas que gestam. A nossa organização como classe trabalhadora e como mulheres é fundamental para lutarmos por direitos reprodutivos. Nada é nos dado de graça, sempre foi com muita luta e pressão popular. A história nos ensina que a luta é longa, mas que a nossa revolta em ver e ler sobre tantas injustiças, sejam elas feitas diretamente a nós ou a terceiros, é um meio para nos unirmos e alcançarmos um mundo onde cada mulher, menina e pessoa que gesta possa ser livre para decidir sobre seu corpo.