sábado, 2 de novembro de 2024

Andorinhas-azuis intrigam cientistas em ilhota da Amazônia

Em uma minúscula ilhota no meio do rio Negro, no estado do Amazonas, uma equipe de cientistas em duas lanchas examina atentamente o céu. Conhecida como Ilha do Comaru, ela está submersa, como acontece todos os anos em março, e apenas as copas das árvores aparecem acima da superfície.

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Um grupo de andorinhas-azuis passa zunindo, cortando o ar pesado e úmido da região e, logo acima das lanchas e da ilha, um bando de pontinhos negros começa a se acumular, como nuvens de aves.

Elas formam então um redemoinho sincronizado. Poucos minutos depois, porém, caem como uma chuva de granizo negro, incrustando as árvores, enquanto o seu som se intensifica e ocupa todo o começo da noite.

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Em questão de minutos esse espetáculo termina, deixando o céu novamente imóvel.

A ilha de apenas cinco hectares —quase o tamanho do Estádio do Morumbi— atrai uma quantidade enorme dessas andorinhas de penugem cintilante. Por receber a visita de aproximadamente 250 mil indivíduos de fevereiro a abril, é considerada um dos maiores refúgios da espécie já descobertos.

O papel que esse lugar desempenha na migração do pássaro intriga os cientistas. Comaru pode ser o ponto de partida, suspeitam os pesquisadores, para muitos dos 9,3 milhões de andorinhas-azuis que se encaminham da América do Sul para a América do Norte anualmente.

Mario Cohn-Haft, curador de aves do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), em Manaus, também acredita que a ilha possa ser fundamental para entender o declínio constante da espécie. “É a maior janela que temos para o que as andorinhas-azuis fazem na América do Sul”, diz.

Estima-se que a população reprodutora norte-americana dessas aves tenha diminuído 25% desde 1966. Em algumas áreas, a queda foi ainda mais acentuada. Em outras, as aves desapareceram completamente.

Pouco se sabe sobre os desafios que a espécie encontra quando viaja. “Se pudermos rastrear seus movimentos, descobrir o que estão comendo e analisar se foram contaminados por pesticidas e outros poluentes, podemos aprender algo sobre como estão se saindo aqui”, afirma.

Cohn-Haft, junto a cientistas americanos e brasileiros, realizou em 2022 o estudo mais abrangente já feito sobre Comaru, em busca de informações que possam ajudar a garantir o futuro da espécie.

Na América do Norte, a área de reprodução da ave se estende do Canadá ao México, mas se concentra principalmente a leste das Montanhas Rochosas, nos Estados Unidos.

As andorinhas-azuis fazem ninhos exclusivamente em estruturas que os humanos erguem para recebê-los —de cabaças ocas a miniaturas de “condomínios”. Os pássaros muitas vezes voltam para o mesmo quintal, e até mesmo para a mesma estrutura, todos os anos, o que facilita a pesquisa com auxílio de dispositivos de rastreamento, que devem ser recuperados junto com as valiosas informações que trazem.

Se os pássaros chegam um pouco atrasados, “nosso telefone toca sem parar com pessoas fora de si, preocupadas que seus bebês não voltaram”, diz Joe Siegrist, presidente da Purple Martin Conservation Association, organização sem fins lucrativos de proteção e pesquisa da espécie nos EUA.

Mas essa relação nem sempre foi próxima assim. Cavidades naturais, como espaços ocos em árvores, já foram colônias de andorinhas-azuis. A perda delas, porém —juntamente com a competição de espécies agressivas e não nativas como o estorninho europeu—, tornou as aves “100% dependentes de humanos fornecendo moradia para que eles se reproduzam”, diz Siegrist.

Embora já tenham sido estudadas extensivamente na América do Norte, o conhecimento científico sobre as andorinhas-azuis diminui quando elas voam para o Sul. Exatamente para onde vão, quais rotas tomam e qual habitat encontram ao longo do caminho permanecem como mistérios.

As andorinhas-azuis, por serem insetívoros aéreos (caçam insetos voando), estão entre os grupos de aves de declínio mais rápido, já que as populações de insetos também diminuíram pelo uso de pesticidas, entre outras causas. O risco para essas aves é ainda agravado por suas longuíssimas jornadas de migração.

Elas são avistadas há muito tempo na Amazônia, mas os primeiros estudos mais aprofundados começaram poucos anos atrás. Em 2007, Bridget Stutchbury, bióloga da York University em Toronto, Canadá, equipou os primeiros pássaros canoros (aqueles de cantos harmoniosos) —20 andorinhas-azuis e 14 tordos-dos-bosques— com geolocalizadores.

Stutchbury recuperou dois geolocalizadores de andorinhas e descobriu que uma delas passou o verão (do hemisfério Sul) na Amazônia, enquanto outra ficou mais ao sul no Brasil durante a estação.

Sete anos depois, Kevin Fraser, pós-doutorando orientado por Stutchbury, agora ornitólogo da Universidade de Manitoba, no Canadá, equipou 105 andorinhas-azuis com rastreadores mais avançados.

Os 14 conjuntos de dados que ele recuperou revelaram que todos, exceto um, haviam passado o verão na Amazônia e que cinco ficaram bastante tempo perto de Manaus, amontoados em uma área não maior que um lote residencial.

Siegrist e Fraser, que mantêm parcerias para pesquisas, decidiram então que era hora de dar uma olhada mais de perto. Eles e outros dois colegas visitaram Manaus em novembro de 2016 e 2018 e procuraram os locais que os pássaros de Fraser visitaram, mas não encontraram nada.

Mais adiante, no entanto, entenderiam que escolheram a época errada —eles estavam três meses adiantados. Também perceberam que os pássaros não haviam retornado para a ilha onde Fraser os havia localizado. “Eles trocaram exatamente quando pensávamos que sabíamos onde eles estavam”, diz Siegrist.

Finalmente, no início de 2019, Cohn-Haft soube por uma aluna de um enorme bando de pássaros que um guia local havia mostrado a ela a apenas 30 km de Manaus.

O guia, José Francisco dos Santos de Moraes, começou a levar alguns visitantes para ver a grande revoada que chegava ao entardecer. Cohn-Haft, ao ir ao local, soube imediatamente que eram andorinhas-azuis.

“Foi um desses momentos absolutamente arrepiantes, emocionantes, inspiradores”, recorda ele, que imediatamente também imaginou que o lugar poderia ser um tesouro de dados científicos da espécie.

O Restaurante Flutuante do Paulão virou então uma espécie de QG para pesquisas, que são apoiadas pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações e pela Purple Martin Conservation Association. Ancorado próximo à Ilha do Comaru, ele foi alugado por cientistas para servir de refeitório, dormitório e laboratório de campo, já que no entorno é fácil encontrar andorinhas-azuis para os estudos.

“Você pode remar em um barco e colhê-las das árvores como maçãs”, diz Siegrist.

O mutirão de ornitólogos coletou amostras de material das aves que vão ajudar a determinar quais patógenos elas carregam —uma doença, talvez associada à exposição a substâncias tóxicas, pode ser a explicação para o declínio da população de andorinhas-azuis. Erika Hingst-Zaher, pesquisadora do Instituto Butantan, e C. Loren Buck, biólogo da Universidade de Northern Arizona, lideram esse trabalho.

Este é o terceiro ano que Cohn-Haft e Siegrist estudam as aves em Comaru. Eles capturaram cerca de cem pássaros de cada vez, e a maioria deles parece estar preparada para seguir para o hemisfério Norte —com penas novas, melhores para o voo, músculos reforçados e estoques de gordura para a viagem.

Etiquetas de rádio ajustadas às aves em temporadas passadas, detectadas pela rede de receptores dos cientistas, mostraram que permanecem no máximo duas semanas. Isso dá a Cohn-Haft a confiança de que muito mais indivíduos passam pela região do que a contagem até hoje estimou. Para ele, o número deve estar mais perto de 1,5 milhão.

O fato de uma fração tão grande de andorinhas-azuis do mundo depender de um único local suscita preocupações. Embora atualmente não haja planos de construir uma represa no rio Negro, uma futura hidrelétrica, por exemplo, poderia inundar a ilha que serve de poleiro. “Essa densidade populacional os torna vulneráveis”, explica Siegrist.

A pesquisa em Comaru também pode apontar para preocupações de conservação mais globais. O mercúrio de fontes naturais e humanas, como as atividades de garimpo, pode percorrer a cadeia alimentar até chegar às andorinhas. Por isso, Hingst-Zaher e Buck investigam se a contaminação por esse metal pesado pode afetar os sistemas endócrinos das aves, reduzindo as reservas de gordura e tornando-as menos aptas para migrar.

Os cientistas esperam que quaisquer descobertas que fizerem ajudem a entender o que está por trás do declínio de outros pássaros canoros, especialmente outros insetívoros aéreos.

Já é quase meia-noite quando os pesquisadores acabam de processar o último pássaro no laboratório montado no restaurante flutuante. Dois estudantes de pós-graduação entram cautelosamente em um barco levando os animais em sacos de pano.

Cohn-Haft, ansioso, pede que eles se apressem. Os pássaros devem voltar ao poleiro o quanto antes para ter uma boa noite de descanso —afinal, eles têm uma longa jornada pela frente.

Como é uma andorinha-azul?

    • Nome científico: Progne subis
    • Onde vive? Procria nos Estados Unidos, México e sul do Canadá, mas passa o resto do tempo no Brasil
    • Como é a sua aparência? Quando adulta, tem cerca de 20 cm de comprimento e pesa de 45 g a 60 g. A envergadura, em média, é de 40 cm. Apesar do nome, conforme a luz em que é observada, pode não parecer azul, mas roxa ou mesmo verde
    • Do que se alimenta? De insetos, geralmente capturados durante o voo

A reportagem foi feita com o apoio do Pulitzer Center.

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