O Enem deste ano pediu que os seus participantes refletissem sobre Os desafios para a valorização da herança africana no Brasil. A escolha desse tema para a redação do Enem e o fato de este ser realizado no mês de novembro, mês da consciência negra, não podem ser vistos como mera coincidência. Creio ter sido uma forma de o Governo Federal provocar o início de uma reflexão sobre o racismo no Brasil, fenômeno tão exacerbado pelo suposto anonimato das redes sociais.
Como nesta coluna o tema principal é a música, vamos conhecer alguns artistas que não estão entre os mais tocados das principais plataformas de streaming. Hoje vamos conhecer dois talentos nacionais: os Tincoãs e Ana Paula Cruz. Vamos começar pelos Tincoãs.
Os Tincoãs surgem no cenário musical brasileiro no início da década de 1960 com a seguinte formação: Erivaldo Souza Brito, Heraldo Costa Bouzas e Grinaldo Salustiano dos Santos, o Dadinho, todos naturais da cidade de Cachoeira, recôncavo baiano.
No começo o trio tinha seu repertório voltado ao bolero, trabalho muito parecido com o do Trio Irakitan. Após um certo tempo Erivaldo sai do grupo e em seu lugar entra Mateus Aleluia. A partira daí o trio renovou seu repertório e revolucionou a música brasileira ao criar harmonias vocais para cantos de religiões afro e sambas de roda. Foi assim que Os Tinkoãs renovou seu repertório e mergulhou na cultura do Candomblé e seus terreiros, rodas de capoeira e de samba e tudo o que aludisse às origens africanas do Brasil e do trio.
Em 1973, lançaram um disco homônimo que chamou a atenção da crítica e do público com arranjos delicados, um violão, instrumentos de percussão e uma harmonia vocal repleta de doçura. Destacam-se aí os cantos para os Orixás: Iansã, Obaluaê e Iemanjá. Essa tendência permanece no álbum seguinte, “O africanto dos Tincoãs”.
De percurso mais recente, Ana Paula Cruz é professora, arranjadora, flautista e saxofonista licenciada em música pela UNIRIO, além de mestre em Práticas Interpretativas pela mesma universidade e pós-graduada em Arteterapia pela Universidade Cândido Mendes. Apesar de atuar no cenário musical há um certo tempo, Ana Paula Cruz só dá início ao seu projeto solo em 2021 com o lançamento de sua releitura da canção “Termpo Rei”, composta por Gilberto Gil.
Nessa versão, a flautista traz uma nova roupagem com traços de estilos como o rap, o trap, o samba, o baião e poesia. No ano seguinte lança o EP “Referências” em que revisita as obras de Daniele Spielman, Nelsinho Freitas, Vinícius de Moraes e Baden Powell.
Esses dois exemplos são uma simples ilustração da importância da herança africana para a nossa cultura. Se pesquisarmos mais chegaremos a muitos outros nomes dentro e fora da MPB que influenciam e fazem a nossa música tal como a conhecemos.
De acordo com Thiago Alves de Souza, Doutor em Música pela Universidade de São Paulo e muito ativo nas redes sociais, apesar da visibilidade dada a artistas brancos, as tradições musicais populares são criadas por populações negras e indígenas para depois serem adotadas pelos brancos.
Como diria Adriana Calcanhotto, no Brasil, a música branca é negra. Podemos dizer, portanto, que esta constatação, de que toda a nossa música popular é fruto da herança africana, é ao mesmo tempo uma prova e um desafio para o reconhecimento da importância cultural da produção cultural das pessoas pretas, além de uma forma de enxergarmos e poder superar o racismo tão presente em nosso país.