quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O que os olhos não podem ver, as lentes veem

Recentemente fui a um show desses que os seus ídolos são alvejados de flash e filmagens extravagantes e demasiadas que fogem a qualquer controle que passa pela razão, com gritos emocionados, quase todos estavam com seus aparelhos celulares em punho, com as lentes ao reversos fazendo selfies e mais selfies.

Mesmo com chuva, frio e escuro, havia muita gente junta com o objetivo principal de ver seu ídolo no palco, entretanto ninguém vê realmente nada, quem vê são as lentes. 

O difícil é quando o espetáculo se inicia, quem não levou o celular, não consegue de fato ver o espetáculo, os olhos são ofuscados por luzes e lentes. 

Ver o espetáculo com seus próprios olhos é algo que já não me parece tão importante. O importante me pareceu a quantidade de fotos, vídeos para instagram, stories e selfies que o espectador levou para casa ( nuvem) ou para suas postagens ao vivo ( reels).

Lembro-me que na década de 90, quando as lentes eram tão poucas, e ao mesmo tempo a dificuldade de tirar fotografias e revelá-las era tanta, que algumas nem eram mesmo reveladas, outras queimavam no próprio filme dentro da máquina, a dependência de iluminação era tão grande que às vezes uma imagem escura era apenas a única recordação de uma aniversário ou casamento.

Era comum que amigos que participavam de um evento social, jogos, casamento, churrasco da turma e outros, raramente viam fotos desses momentos. 

O engraçado que nessa época, fui em alguns shows de mega artistas internacionais, no Rio de Janeiro e São Paulo e a entrada com máquinas de fotografias, filmadoras e similares, era proibida, mas mesmo assim as lembranças que meus olhos assistiram sempre existiram, mesmo sem  uma foto, ou simples filmagem. Hoje isso seria um desespero, algo  quase que impraticável.

Ver seu ídolo de perto, experienciar de tudo com ele, alí pertinho, todas as sensações possíveis de um show, ou evento sem a foto do seu herói ou heroína musical ou é praticamente impossível nos dias de hoje, onde as lentes são mais que os olhos. 

A sensação de vivenciar um show como uma experiência extra-sensorial, música boa, ambiente agradável, pessoas agradáveis, liberdade,  espaço  e natureza foram substituídas por uma experiência quase robótica, na qual ninguém quer dar espaço para as verdadeiras sensações, e quem quer agir como tal, se coloca em um espaço de isolamento, quase de exclusão.

É comum que perguntem, você não está gostando do show? Não está filmando nada? Não faz selfies? E por assim vai…sem contar que os espaços particulares para espetáculos tem mais seguranças por metro quadrado que os de épocas atrás. A segurança foi instaurada nos espetáculos, primeiro pela própria segurança, revistas quase que policiais, depois pela justificativa do valor do acesso ao show, quanto mais segurança mais caro é o ingresso, e quanto mais caro o ingresso mais próximo do ídolo você estaria teoricamente. 

Por falar em eventos sociais e Shows, eu raramente vou, sinto-me com uma liberdade vigiada, parecendo que estou em um evento militar ou da polícia civil, o espaço que era para ser sensorial, experiencial e prazeroso, começa a me aparecer muito cheio de regras, normas demasiadas para hora de lazer, às vezes a única hora de lazer que a pessoa tem na semana.

Homens para revistar ao lado direito, mulheres ao lado esquerdo! E por aí vai. Quem é da época dos anos 80 e 90 não está acostumado com latinha de cerveja a 12 reais, muitas vezes quente, filas intermináveis para pegar fichas, filas intermináveis para pegar a cerveja, filas intermináveis para a revista, e por aí vai.

Tirar selfies de tudo isso e postar como se fosse a oitava maravilha do mundo, e todos com uma felicidade irretocável com seus sorrisos brilhantes. São os eventos no quadrado, nada é permitido acontecer fora dos padrões anteriormente e previamente anexados.

Quem nasceu nessa época quer curtir um show, um espetáculo, um evento social, um aniversário e tirar uma foto para registrar na entrada e outra na saída, a gente se contenta com pouco. Estávamos tão acostumados a viver experiências reais e reduzir  a importância das imagens e fotografias pois contávamos com  poucos recursos de registros  na época.

Um dia desses promovemos um encontro de colegas de infância aqui em casa, curtimos tanto e nos divertimos tanto que eu e meus amigos nem lembramos de tirar fotos. Fomos realmente felizes no espaço e no tempo. 

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Alessandra Jantorno
Alessandra Jantorno
É professora e pesquisadora em Psicologia Junguiana e doutora pela Ufes. Em 2014 estudou na Universidade de Granada na Espanha, onde ganhou o prêmio de microrelatos Santo Tomaz de Aquino.

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