A música caipira mudou muito desde que Cornélio Pires decidiu, em 1928, lançar os primeiros discos do gênero. Durante esses quase 100 anos de história, foram incorporados ritmos (guarânia e polca paraguaia) e instrumentos diferentes das primeiras formações originais. Destacamos aí a inclusão da harpa paraguaia e outros mais “tecnológicos” como a guitarra, sintetizadores dentre outros.
Nesse período até a referência ao estilo mudou. Começou a receber a denominação de música caipira e, pouco tempo depois, passou-se ao rótulo de sertanejo e, em seguida, de sertanejo universitário. Os seus intérpretes também deixaram de ser chamados de duplas caipiras para serem referidos como duplas românticas.
Apesar de todas essas mudanças e “modernizações” um elemento une todos artistas do gênero: a tristeza. Se prestarmos atenção aos temas da maioria das canções perceberemos que essas obras tratam de diversos tipos de situações triste ou trágica. Uma das mais conhecidas é a história de Chico Mineiro.
Ao fazer essa constatação muitos podem se perguntar: por que a tristeza é um tema tão presente nesse gênero musical? Ao começar meus estudos de viola caipira, eu fiquei intrigado e passei a pesquisar o tema. Foi na história do nosso país que eu descobri a resposta para esta questão.
No início da colonização do Brasil os jesuítas tiveram um papel muito importante para o desenvolvimento da cultura e da música caipira. Um dos primeiros meios de catequização dos indígenas foi a música. Por isso, foram trazidos instrumentos de Portugal, dentre eles destacam-se a viola, que ainda não era caipira.
Durante esse processo foram absolvidos ritmos dos povos originários do Brasil, como o cururu e o cateretê, e o batuque dos africanos. Nessa época a música praticada por aqui gravitava entre dois núcleos: a adoração e o cotidiano.
A adoração se fazia presente nas festas da igreja, nas folias de Reis, nas festas do Divino Espírito Santo e nas festas juninas. Tudo isso era celebrado com muita alegria e os ritmos empregados traduziam esse espírito.
O cotidiano na música era abordado de maneira oposta, ou seja, por meio dela retratava-se a dureza da vida do campo, das desilusões amorosas, das dificuldades sociais e das tragédias do dia a dia. Além da tragédia de Chico Mineiro, podemos incluir nessa categoria o “Menino da porteira” e “Cabocla Tereza”, cuja história trágica continua em “Chico Mulato”.
Sérgio Reis & Filhos – O Menino Da Porteira – Violas & Violeiros
Ao perguntar a algumas pessoas do interior de nosso estado sobre o que elas pensam ser a melhor definição de música caipira, eu tinha como resposta a seguinte frase: “é uma música que conta uma história que pode não ser real, mas poderia ser.” Nesse sentido, canções como “Couro de Boi” e “Meu reino encantado” são ilustrações fiéis dessa definição.
Daniel – Meu Reino Encantado (Clipe Oficial – DVD Ao Vivo)
Podemos dizer que de certo modo a sofrência sempre esteve presente na temática da música caipira ou sertaneja. A diferença é que agora ela mudou de cenário. O ambiente simples da roça deu lugar aos bares e baladas de cidades do interior cujo estilo de vida mudou muito e está cada vez mais semelhante com os das grandes cidades.
Partindo desse cenário é bastante sintomático que “Evidências” seja uma das músicas mais lembradas quando se menciona a sofrência. Sucesso na voz de Chitãozinho e Xororó, essa canção foi escrita por José Augusto, que não tem nada de caipira ou sertanejo, mas soube traduzir o termo sofrência, mesmo antes da criação desse neologismo.
Chitãozinho & Xororó – Evidências
O ponto da sofrência é enfatizar o sofrimento que, apesar de ser expresso por vozes de cantores e cantoras com origem em cidades do interior e no ambiente rural, é compartilhado por todos, mesmo os mais urbanóides dos seres humanos. Um bom exemplo dessa temática foi cantado por Marília Mendonça em “Todo mundo vai sofrer”, que trata das dependências presentes em muitos relacionamentos e das derrotas vividas por quem participa do jogo do amor.
Marília Mendonça – TODO MUNDO VAI SOFRER (Todos Os Cantos)
Poderia citar muitos outros exemplos tanto da tristeza da música caipira quanto da sofrência de hoje, que em muitos aspectos soam distintos. No entanto, é importante ressaltar que, mesmo não nos agradando, ambos são frutos de um ambiente rural que mudou muito desde os primeiros álbuns lançados em 1928. Apesar disto, não se pode negar que a tristeza do Jeca continua a mesma, o que mudou foi o jeito como o Jeca chora.
Zezé Di Camargo & Luciano – Tristeza do Jeca (Áudio Oficial)
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