Em algum lugar, duas pessoas conversam:
– Eu gosto de X.
– Pô, nem curto, acho um saco.
– Então você tá dizendo que a minha mãe é uma vagabunda?
Esse diálogo só não é real pelo mero detalhe de não ter acontecido. Mas o tom do debate, especialmente no Twitter, é esse: se alguém fala mal de algo que eu gosto, essa pessoa está falando mal de mim.
Se eu gosto de algo, eu REALMENTE gosto. Leio, assisto e ouço tudo o que encontro sobre o assunto. Na minha fase mais aguda de vício em música jamaicana, isso me rendeu palestra sobre o assunto.
A quantidade de horas que eu gastei refletindo sobre o disco não gravado por Miles Davis e Jimi Hendrix (dois dos meus heróis pessoais) provavelmente é o suficiente para gravar um outro disco.
Mas gostar das coisas que eu gosto não é um traço da minha personalidade. “Ah, João Paulo, mas você tocava música de 28 minutos do Fela Kuti na Universitária FM”. É, tocava. E, ainda assim, o Bolsonaro foi eleito. Justamente por saber que ouvir jazz não serve para nada além do meu deleite pessoal, não ponho isso num pedestal. Amo, trato com toda seriedade; mas entendo o limite da coisa.
Se gostar de arte significasse alguma coisa além de gostar de arte, aquela gente podre que formava o alto escalão nazi na Alemanha não gostaria de arte. Você gostar de uma cantora pop contemporânea, da franquia de filmes de heróis, significa apenas que você gosta do que você gosta.
Alguém ter uma crítica sobre o que aquilo representa não é uma crítica a você. E, caso a pessoa que faz a crítica tenha um mínimo de honestidade intelectual, ela entende que não escapa ao que crítica.
Um exemplo claro: Alan Moore sobre filmes de heróis e pós-verdade. A pós-verdade é um tema que me interessa desde que o termo se popularizou, em 2016. Gosto do que o Moore fala, não estabelecendo uma causalidade direta, mas alguma relação sobre essas duas coisas ascenderem ao mesmo tempo.
E entendo duas coisas: em primeiro lugar, ele não está criticando pessoalmente quem gosta de filme de herói (nem falando dos filmes em si). E em segundo, que mesmo não me ligando tanto nesses filmes mas estando vivo durante esses estranhos tempos de pós-verdade, eu também não escapo disso.
Como se sabe, nada existe num vácuo. Importante também, em nome da honestidade intelectual, reconhecer que se você existe ao mesmo tempo que um fenômeno, você também faz parte daquilo de alguma forma.
As redes sociais, com seus algoritmos que capitalizam seu ódio e indignação, possuem grande responsabilidade nisso. Discussões mais matizadas não fazem muito sucesso na rede do bilionário meritocrata filhote do apartheid.
Fãs da Beyoncé e da Taylor Swift estavam numa discussão ferrenha sobre qual das duas leva maiores e melhores celebridades aos seus shows (uma das coisas mais bizarras que já testemunhei em vida). Lembra aquela série do Donald Glover (Enxame, aqui no Brasil), em que acompanhamos uma fã de uma diva pop que sai cometendo atrocidades contra quem não é devoto da mesma santa.
E sem dúvida é reflexo da nossa cultura, cada vez mais voltada para “criação de conteúdo” (fotos e vídeos para o Instagram, vídeos mais curtos e ágeis para o TikTok, agora tem o Thread do Zuckerberg também); e longe de mim querer parecer o suprassumo da sensatez, mas quando a vida chega nesse ponto, talvez seja o momento de rever as coisas.
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