sábado, 21 de dezembro de 2024

Baianos defenderam ilha de ataque português há 200 anos

Pés descalços, cocares em verde e amarelo e tinta vermelha em tom escuro nos rostos de pele negra. Os Caboclos de Itaparica batem os arcos nas flechas em um som ritmado e caminham em ritmo acelerado pelas ruas de pedra da cidade histórica.

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Nas janelas das casas de Itaparica, balneário de 22 mil habitantes na ponta norte da Ilha de Itaparica, a maior da baía de Todos-os-Santos, famílias saúdam a passagem do cortejo que inclui indígenas, baianas, sambadeiras e capoeiristas.

Mas o dono da festa é o caboclo, figura mítica que representa a participação popular nas lutas pela Independência do Brasil. A imagem de madeira é carregada nos ombros até ser colocada no pedestal no carro do caboclo, puxada por meio de cordas por homens, mulheres, idosos e crianças.

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Em Itaparica, o caboclo é reverenciado todo dia 7 de janeiro, data que marca o início da Batalha de Itaparica, luta pela Independência com forte participação popular e protagonismo de mulheres.

O combate marcou o declínio das tropas portuguesas na Bahia, que permaneciam ativas em Salvador quatro meses após a proclamação da Independência por d. Pedro 1º.

Há 200 anos, no dia 7 de janeiro de 1823, navios portugueses liderados por João Felix Pereira Campos cercaram a Ilha de Itaparica para o que se pretendia ser um ataque rápido com o objetivo de dominar a área insular mais estratégica da baía de Todos-os-Santos.

A ocupação era considerada fundamental para abrir um caminho seguro para o transporte de alimentos, como feijão, milho e farinha, que eram produzidos no Recôncavo e abasteciam Salvador.

Os caminhos por terra e por mar estavam bloqueados com o cerco das tropas de brasileiros à capital dominada pelos portugueses, resultando em escassez e carestia dos alimentos.

Por isso, a batalha se tornou crucial para os planos de Portugal: se conquistassem Itaparica, os lusos dominariam as rotas de navegação interna da baía de Todos-os-Santos e abririam caminho para abastecer seus soldados.

O ataque já era esperado. A Ilha de Itaparica já havia sido alvo de outras ofensivas dos portugueses em agosto e setembro de 1822, o que serviu para que o lado brasileiro reforçasse suas defesas, cavando trincheiras nas praias e trazendo peças de artilharia de Morro de São Paulo.

Nos primeiros dias de janeiro de 1823, já havia informações de que os portugueses viriam com força total. Antônio de Souza Lima, português que aderiu à causa brasileira e liderou soldados em Itaparica, disse que estariam preparados para enfrentar o ataque.

“Não haverá sacrifício que não façamos para repelir o temerário inimigo da nossa liberdade e independência pela qual pugnamos e derramamos a última gota de sangue”, afirmou Lima em carta ao Conselho Provincial, documento encontrado pelo pesquisador itaparicano Felipe Brito Peixoto.

Os portugueses iniciaram o ataque na manhã de 7 de janeiro. Com uma esquadra formada por 40 barcas, embarcações à vela e lanchas canhoneiras, concentraram-se na altura do Forte de São Lourenço, principal ponto de defesa da ilha.

Os primeiros disparos dos canhões lusos miraram justamente o forte, mas não ficaram sem resposta e parte da frota foi alvejada com tiros. Os portugueses recuaram e tentaram uma nova estratégia: desembarcar nas praias de Amoreiras e Mocambo, mais afastadas do centro da então vila de Itaparica.

Com cerca de 2.000 soldados, os portugueses tentaram desembarcar na ilha por meio de embarcações menores. Mas foram surpreendidos por forte bombardeio vindo de trincheiras cavadas ao longo da praia e de ataques da pequena frota de barcos do lado brasileiro, que ficou conhecida como “flotilha itaparicana”.

Em terra e no mar, homens e mulheres da vila, em sua maioria negros e indígenas, foram para a linha de frente na defesa de Itaparica. Segundo o pesquisador Felipe Brito Peixoto, “as pessoas defenderam o lugar onde nasceram, onde tinham suas casas, onde enterraram seus mortos. Sem essa coesão e sem esse senso de comunidade, não haveria vitória”.

Os portugueses não resistiram ao contra-ataque e, no final do dia, bateram em retirada. Os navios ainda voltaram nos dias 8 e 9 de setembro, mas foram mais uma vez repelidos, sacramentando o triunfo brasileiro na batalha. As estimativas variam entre 200 e 500 mortos do lado português.

“Essa batalha é o começo da derrota dos portugueses. A tropa volta para Salvador humilhada justamente pelo papel das mulheres e dos habitantes de Itaparica”, afirma a historiadora Patrícia Valim, professora da Universidade Federal da Bahia.

Ela destaca o papel das mulheres que atuaram na defesa de Itaparica. O símbolo principal é Maria Felipa de Oliveira, marisqueira negra que teria se engajado nas lutas contra os portugueses.

Moradora da ilha, ela ficou conhecida por percorrer o rio Paraguaçu, principal via fluvial que corta o Recôncavo e desemboca na baía de Todos-os-Santos, levando informações para Cachoeira, núcleo central da resistência baiana, e trazendo mantimentos para Itaparica.

“Ela é descrita pelos contemporâneos como uma mulher muito brava e que não admitia ousadia, como se diz na Bahia”, afirma Patrícia Valim.

Junto a outras mulheres, que ficaram conhecidas como vedetas, Maria Felipa teria liderado um ataque a soldados portugueses que desembarcaram em uma das praias de Itaparica. Eles teriam sido surrados com folhas de cansanção, urticante que deixa sensação de queimadura, e tiveram dois navios incendiados.

O cerco das vedetas aos portugueses não tem registros históricos oficiais, mas sobreviveu na tradição oral de Itaparica e foi passado de geração em geração. Em 2018, Maria Felipa foi declarada Heroína da Pátria Brasileira, tendo seu nome inscrito no “Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria”.

A memória de Maria Felipa e dos itaparicanos que lutaram nas batalhas pela Independência é celebrada todos os anos no mês de janeiro, quando uma festa de três dias envolve toda a cidade.

A tradição se repetiu neste ano, quando o cortejo liderado pelos Caboclos de Itaparica percorreu as ruas de pedra da cidade sob aplausos até a Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento.

Enquanto isso, no entorno da igreja, rodas de capoeira e sambas de roda celebravam a memória dos homens e mulheres que lutaram em Itaparica, perpetuando a história entre cantos e ladainhas.

Tinta vermelha na pele preta, Emanoel Pitta de Brito, 50, sabe disso: “O sangue do povo nativo itaparicano, derramado aqui nesse território, foi crucial para consolidar a Independência. Representamos esse povo que a história não conta, mas que nós sabemos que existe. Isso nos enche de orgulho”.

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