Após dar três voltas ao redor da cabeça de Nicolás Maduro, o passarinho pousou na viga de madeira de uma pequena capela na cidade de Sabaneta, onde cresceu Hugo Chávez. “Cantou um pouquinho, deu uma volta, foi embora e eu senti o espírito dele”, contou o ditador da Venezuela.
Morto naquele 2013 em decorrência de um câncer, o mítico líder bolivariano comunicou-se por meio do pássaro, afirmou Maduro à época, em um discurso no pátio da casa onde Chávez nasceu. “Hoje começa a batalha. Rumo à vitória. Vocês têm nossa bênção”, teria dito simbolicamente a ave.
Isso é o que conta o ditador, que recorreu à história um mês depois da morte de seu antecessor e no dia em que começava a sua primeira campanha pela Presidência —cadeira na qual segue desde então. A infinidade de referências a Chávez foi pouco a pouco substituída por enaltecimentos pontuais, em efemérides como a deste domingo (5), quando se completam 10 anos de sua morte. Maduro, por sua vez, saiu da posição de número 2 e ganhou luz própria para se manter no poder em um país colapsado.
A figura de Chávez, exaltada ou repugnada a depender do enunciador, ainda hoje é conhecida em todo o mundo como a do líder que tentou implementar na Venezuela do início dos anos 2000 —então a mais duradoura democracia da América do Sul— o socialismo do século 21.
Mais de 20 anos depois, porém, os problemas sociais que levaram Chávez ao poder se agravaram de maneira inédita. No final do século passado, época de sua ascensão, o país passava por múltiplas crises relacionadas à desigualdade e à pobreza, além de um profundo descrédito da sociedade em relação aos partidos políticos que protagonizavam escândalos de corrupção —temas alvo da retórica de Chávez.
“Quando comparamos sua oferta e sua entrega, vemos que não dá match”, afirma Maryhen Jimenez, venezuelana doutora em ciência política pela Universidade de Oxford. “Ele foi incapaz de construir consensos e grandes maiorias a favor de uma mudança democrática na Venezuela.”
Consultorias independentes calculam a inflação venezuelana de 2022 em 310,33%, o que nem chega a ser a pior cifra dos últimos anos. Em 2021, o Banco Central informou que o índice foi de 686,4%; em 2018, inimagináveis 130.060%. Há ainda uma crise humanitária sem precedentes no país. No final de 2021, a agência da ONU para refugiados contabilizava 6,1 milhões de venezuelanos refugiados ou migrantes —número próximo ao da Ucrânia, em guerra com a Rússia há mais de um ano. A Venezuela também se destaca no ranking da corrupção, ocupando a quarta posição global e a liderança da lista nas Américas.
Para Jimenez, o enfraquecimento da imagem de Chávez —notável até mesmo em grafites e cartazes— está relacionado à distância entre a Venezuela de hoje e a terra prometida por ele. “Chávez propunha o controle do Estado, mas a vida cotidiana do país está completamente privatizada. Quem não tem acesso a dólares simplesmente não vai ter fornecimento de água constante.”
O cenário contrasta com os ganhos que a Venezuela teve sob o líder, quando o país reduziu a pobreza de 49,4% para 27,8% —queda proporcionalmente maior que a dos dois primeiros mandatos de Lula no Brasil. Naquele momento, enquanto os brasileiros eram beneficiados pelo boom de commodities impulsionado pelo crescimento excepcional da China, os venezuelanos cresciam com as receitas petroleiras.
Quando essa conjuntura mudou, porém, a nação sucumbiu novamente —desta vez, sob um governo autoritário. Em 2009, Chávez, que já havia tentado dar um golpe de Estado em 1992, fez uma emenda na Constituição aprovada em 1999 para permitir reeleições ilimitadas. Na época, ele falava em ficar no poder até 2030, enquanto perseguia opositores e minava a liberdade de imprensa.
A miséria que se seguiu, porém, não é diretamente associada ao líder bolivariano. “Para parte da população, o grande herói foi Chávez, e a grande traição foi de Maduro”, afirma o cientista político Carlos Raúl Hernandez.
Apesar do estratégico enfraquecimento de sua figura dez anos após sua morte, Chávez ainda é exaltado na Venezuela. Na quarta (1º), Maduro lembrou em um evento o aniversário da “partida física” de seu antecessor. “São dez anos que parecem cem pela intensidade dos acontecimentos e por tudo que enfrentamos. Mas assim como parecem cem anos, parece que foi ontem que demos o último adeus a nosso amado comandante.”
A retórica —chavista agressiva e maniqueísta, segundo Jimenez— também deixou marcas na sociedade venezuelana. Em 2006, quatro anos após ser vítima de um golpe de Estado frustrado apoiado pelos EUA, ele disse, em uma Assembleia Geral da ONU, que o diabo havia passado por ali, em uma referência ao ex-presidente americano George W. Bush.
“Ele conseguiu efetivamente polarizar e penetrar a sociedade venezuelana com seu estilo caudilhista e personalista”, diz a pesquisadora. “Aqueles que estão comigo versus os que não estão. Os traidores da pátria e os leais. Essa retórica gerou uma cicatriz e uma divisão na sociedade venezuelana que chegou até as famílias.”
Internacionalmente, o país tornou-se um inconveniente vizinho para os líderes de esquerda sul-americanos, constantemente cobrados pelo autoritarismo do regime. Em 2018, antes de sua eleição, Gustavo Petro, da Colômbia, chamou Maduro de ditador. O chileno Gabriel Boric, por sua vez, se disse indignado pela esquerda que não condena as violações de direitos humanos na Venezuela.
Lula, que já se desgastou com a defesa do regime, defendeu alternância de poder no país durante sua última campanha. Uma vez eleito, o petista deu aval para o embaixador indicado por Maduro, retomando laços diplomáticos rompidos sob Jair Bolsonaro. Em 2013, Maduro disse que Chávez e Lula eram como irmãos e afirmou que o brasileiro era uma espécie de pai.
A recente aproximação dos EUA, interessados em uma ponte com a Venezuela após o abalo no mercado de petróleo com a Guerra da Ucrânia, ainda não trouxe resultados concretos para o país latino-americano —a despeito do pragmático aceno de Maduro ao presidente Joe Biden.
Para manter-se no poder com uma taxa de popularidade que nunca se aproximou da registrada por Chávez e sendo tachado por setores chavistas como “neoliberal”, Maduro mostra a face mais autoritária do regime. Em 2017, por exemplo, o ditador criou uma Assembleia Constituinte com amplos poderes para neutralizar a vitória da oposição no Legislativo.
As investidas não foram suficientes para estrangular por completo os opositores, que levaram Barinas, estado de Chávez, em uma simbólica vitória nas eleições de 2021. “Onde começou, termina”, afirmou na época Juan Guaidó, um dos principais nomes da oposição a Maduro.
“Há um desencanto geral com a política na Venezuela”, afirma Jean Maninat, analista e filósofo venezuelano. “Mas também há certa esperança com o retorno da oposição à via eleitoral, da qual nunca deveriam ter se afastado.”