segunda-feira, 24 de março de 2025

O dia em que os Novos Cabanos ergueram seus braços empunhados

Era uma manhã quente de fevereiro em Belém, aquele tipo de calor que parece carregar o peso da história. O sol escaldante refletia sobre a Praça Dom Pedro II, em Belém, Pará, onde o monumento ao General Gurjão se ergue imponente, quase desafiador. Ali estava ele, esculpido em mármore, o homem que um dia ajudara a bloquear embarcações durante a Revolução Cabana, em 1835, impedindo que indígenas, quilombolas e tantos outros alcançassem o espaço de lutas e a liberdade que tanto almejavam. Mas naquele 12 de fevereiro de 2025, o passado e o presente se encontrariam de uma forma que ninguém poderia prever.

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Desde cedo, a praça começou a se encher de gente. Indígenas de diversas etnias, quilombolas com seus turbantes coloridos, professores liderados pelo Sintepp com cartazes e faixas vieram em marcha pelas ruas de Belém, saindo da Escadinha, lugar por excelência das manifestações, passando pela Igreja das Mercês, de onde a Cabanagem partiu e chegaram até a praça central. Eram os Novos Cabanos, descendentes diretos daqueles que, no século XIX, haviam lutado por justiça e igualdade. Eles não estavam ali apenas para protestar. Estavam ali para celebrar uma vitória histórica: a revogação da Lei 10.820, uma legislação que feria de morte a educação escolar indígena, quilombola, ribeirinha e da rede estadual regular Depois de mais de 30 dias de ocupação na SEDUC pelos povos tradicionais e mais de 20 dias de greve dos professores, o governador monarca do Pará finalmente cedeu à pressão popular e assinou a revogação da lei.

A manifestação com discursos inflamados que ecoavam pelas ruas de Belém, reforçavam em alto e bom tom o que pensavam e diziam os corações tomados pela emoção: “Hoje é o dia de escrever nossa própria história!”, bradava uma professora, segurando firme uma faixa do movimento. A multidão, cada vez maior, começou a se mover em direção ao monumento, assim que foi proferido pelo telão, em definitivo, a revogação da lei .Era como se uma força invisível os guiasse, uma energia que vinha das profundezas da memória coletiva.
Quando o primeiro indígena escalou o pedestal, uma onda de euforia varreu a praça. Em seguida, vieram os quilombolas, ajudando uns aos outros a subir. Professores, jovens, idosos – todos se uniram para alcançar o topo. E então, com um gesto simbólico que parecia ecoar séculos de resistência, eles ergueram seus braços empunhados. Braços que carregavam a força dos povos indígenas, a resistência dos quilombos, a luta pela educação pública. O monumento ao General Gurjão, antes um símbolo de dominação, agora estava cercado por uma muralha de braços erguidos, firmes e determinados.

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A multidão explodiu em aplausos, gritos de vitória e cantos em línguas ancestrais. Era mais do que uma manifestação: era uma cerimônia de reconexão com o passado e de afirmação do futuro. “Hoje, nós nos vingamos não com violência, mas com a força da nossa cultura e da nossa união!”, declarou uma liderança quilombola, enquanto erguia o braço em um gesto de triunfo.

Enquanto isso, o General Gurjão, em sua estátua de mármore, parecia olhar para baixo, impotente. Seu feito histórico, outrora celebrado como uma vitória da ordem, agora era visto sob uma nova luz: o bloqueio que ele impôs não conseguiu calar aqueles que lutavam por justiça de séculos depois. E ali, naquela praça, os Novos Cabanos provavam que a história não poderá jamais ser escrita apenas pelos vencedores, mas também por aqueles que resistem e são sujeitos históricos.

Ao meio dia, a praça ainda estava cheia de gente. Os braços continuavam erguidos, firmes e altivos, e o som dos tambores e maracás ecoava nos arredores da rua. Era como se a cidade inteira respirasse aliviada, como se um peso antigo tivesse sido finalmente removido. Os Novos Cabanos haviam feito mais do que derrubar um símbolo; eles haviam reescrito uma importante página da história.

E assim, naquele 12 de fevereiro de 2025, Belém presenciou um novo capítulo da Cabanagem. Desta vez, não houve derramamento de sangue, nem bloqueios nos rios. Houve, sim, a vitória da memória sobre o esquecimento, da resistência sobre a opressão. E no lugar do General Gurjão, ficaram os braços empunhados dos povos que ele um dia tentou calar – erguidos, orgulhosos, e finalmente livres. A revogação da Lei 10.820 era mais do que uma conquista política: era um símbolo de que a luta dos povos tradicionais, dos educadores e de todos aqueles que acreditam em uma educação pública de qualidade não seria em vão.

Naquele dia, os deputados estaduais, ao aprovarem a revogação, pediram uma espécie de perdão aos povos tradicionais e aos professores pela grande maldade que cometeram no dia 18 de dezembro de 2024, quando votaram pela aprovação daquela maldita lei. Reconheceram o erro e a injustiça, e a revogação foi um gesto de reparação, ainda que tardia. E ali, na Praça Dom Pedro II, eles celebraram não apenas uma vitória, mas o início de um novo tempo.

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André Silva
André Silva
Professor - Sindicalista - Militante do Mocambo - Artista popular

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