quinta-feira, 03 de outubro de 2024

Os riscos éticos da imortalidade transumanista

O “não morrerás” que a serpente do Gênesis enganosamente anunciou está entre os pontos prioritários a serem resolvidos na agenda do transumanismo. Mas não há problema: segundo os mais entusiastas seguidores do movimento, a solução já estaria muito próxima – há quem ponha a mão no fogo pela “certeza” de que em 2045 assistiremos à “morte da morte”.

Para os transumanistas, que concebem como dever moral o uso dos avanços tecnológicos para aumentar ilimitadamente as capacidades físicas e cognitivas dos seres humanos, bem como para eliminar o que nele há de “defeituoso” – como o envelhecimento e, em última instância, a morte –, o objetivo é transcender. Mas não a transcendência na memória dos outros pelo bem que se fez, nem aquela que sobrevive no álbum de família ou no livro que se escreveu. Não: o objetivo é viver para sempre. Não morrer.

Para isso, o ideal seria transplantar a mente para um suporte tecnológico, para uma espécie de computador onde o indivíduo – ou, mais exatamente, sua mente; vamos esquecer o corpo, o biológico – estaria a salvo de doenças, cansaço, morte, etc., seria dotado de conhecimento infinito e, no campo moral, pudesse ser bom até o último parafuso (algo talvez mais parecido com RoboCop do que com o Exterminador do Futuro). Não se falaria mais do transumano, mas do pós-humano.

Mas tudo isso parece que vai demorar. Hoje, então, a questão seria adiar a morte, tentando retardar o envelhecimento, e, na hora do falecimento, pagar bem para que nos congelem, e esperemos ser reanimados no futuro. Isso já foi feito com minhocas – serem congeladas vivas –, por isso, para os mais otimistas, faltam apenas algumas décadas para que “a vida é curta!” seja só uma simpática exortação de tempos antigos.

Alongar os telômeros, alongar a vida

Elon Musk, fundador da Tesla, anunciou que em 2023 sua empresa Neuralink já poderá implantar um chip no cérebro humano. Serviria, diz ele, para detectar muito precocemente qualquer problema com a saúde, ou para, por exemplo, dar vista a pessoas que nasceram cegas. “Acreditamos que ainda podemos restaurar a sua visão, porque o córtex visual ainda está lá”, diz Musk. Neste momento, as autorizações para implantação já estão em tramitação junto à Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos.

Se esse chip conseguir uma melhora radical na qualidade de vida das pessoas e contribuir para aumentar seus anos de existência, então perfeito: é o que o homem tem feito desde que bebeu algum tipo de poção analgésica depois de trombar com um mamute. Agora, o esforço de usar a tecnologia para violentar os limites da biologia humana seria uma outra questão, bem diferente.

Um exemplo disso é a tentativa de modificar o comprimento dos telômeros, aquelas partes dos cromossomos que garantem o bom estado do DNA e que se encurtam com o tempo, o que provoca o envelhecimento das células. Para “viver para sempre”, essa redução teria que ser evitada, e foi isso que uma empresa norte-americana, a Libella Gene Therapeutics, propôs em 2019, com o desenvolvimento da terapia gênica para repará-los: se acrescentássemos mil nucleotídeos (os telômeros de um jovem têm entre 8 mil e 10 mil dessas moléculas), hipoteticamente a vida da pessoa seria estendida por algumas décadas.

O tratamento consistiria em injetar na pessoa em questão um ou vários vírus com informações genéticas que dariam às suas células a “ordem” de fabricar telomerase, a enzima responsável pelo alongamento dos telômeros. Na época do anúncio da procura de voluntários, a dose custava um milhão de dólares, e foi preciso ir à Colômbia para inoculá-la, já que o FDA não havia dado permissão para a terapia nos Estados Unidos.

Questionado no início sobre o teste da empresa no país sul-americano, fora do foco do FDA, Jerry Shay, especialista mundial em câncer e envelhecimento do Centro Médico da Universidade do Texas, alertou que o perigo dessa terapia é enorme, pois poderiam ser ativadas células pré-cancerosas, “especialmente em pessoas com mais de 65 anos”.

Só que, para o credo transumanista, o risco é o de menos: se há possibilidades tecnológicas de fazer algo, é imperativo fazê-lo, e fazê-lo já. Michael Fossel, presidente da Telocyte, uma empresa de pesquisa sobre a doença de Alzheimer que investiu tempo e recursos na questão do alongamento dos telômeros para “reverter” o envelhecimento, resume a questão: “Corremos rápido e arriscamos ter pouca credibilidade, ou nos movemos lentamente para ganhar mais credibilidade e aceitação global, embora as pessoas morram enquanto isso?” Os transumanistas têm uma resposta clara: “Vá em frente”.

Congelamento sob encomenda

Outra possibilidade de chegar ao instante futurístico em que a mente pode ser escaneada e transplantada para um computador ou cérebro artificial e assim “viver” para todo o sempre, é a criopreservação: ser congelado depois de morrer, para que, em alguns anos ou séculos, quando for tecnologicamente possível, ser reanimado ou ressuscitado.

A ideia tem seguidores. O argumento é que se um embrião congelado pode ser reanimado, nada impede que isso seja feito com uma pessoa nascida que morreu anos depois. Somente em suas instalações em Scottsdale, Arizona, a Alcor Life Extension Foundation tem mais de 200 pacientes “criopreservados” (um deles, o fundador: Fred Chamberlain), e mais de 1400 estão na lista de espera. Note-se, antes de continuar, que a empresa fala de pacientes, entendendo – coerentemente com sua hipótese de que a morte será vencida tecnologicamente – que não se pode falar propriamente em morte, em um adeus definitivo.

Afiliar-se à Alcor tem as suas “vantagens”. Segundo o seu site, “com mensalidades baixas e apólice de seguro, você tem tudo pronto. Quando chegar a hora, faremos sua criopreservação em nossas instalações de última geração, onde os pacientes são mantidos em cápsulas criogênicas seguras e de longa duração até que sejam reanimados. Bem-vindo ao seu futuro”.

A empresa descreve o processo assim: logo após a morte da pessoa, a circulação sanguínea e a respiração são mantidas artificialmente, o corpo é banhado em água gelada e o sangue é substituído por uma substância que preserva os órgãos e – hipoteticamente – garante sua funcionalidade futura. Posteriormente, são inoculadas substâncias protetoras contra o frio extremo, para que os tecidos não se rompam. Assim, o falecido está pronto para resfriamento profundo (a -196 °C) e é colocado em uma cápsula que é periodicamente preenchida com nitrogênio líquido.

Uma vez acomodado, “o paciente permanecerá em tratamento de longo prazo até que a reanimação seja possível”. Quando? Não há datas, apenas otimismo: “Atualmente, nenhuma organização de criogenia pode reviver um paciente criopreservado, mas na Alcor estamos confiantes de que isso se torne possível. Espera-se que a nanotecnologia e outras tecnologias médicas futuras tenham capacidades muito vastas”.

E se o interessado for europeu e o Arizona parecer longe demais? Não se preocupe: na Alemanha, Suíça e Rússia já existem instalações de criopreservação, e no continente existem quatro ambulâncias equipadas com a tecnologia necessária para o procedimento. Em um recente evento em Madri – Transvisión 2022 –, no qual advogados, engenheiros, médicos, biólogos etc. discutiram a criopreservação, ofereceu-se a um grupo de médicos uma demonstração do processo com um manequim. E deu “tudo certo”, claro.

No caso de um ser humano, não seria diferente. Você só tem que pagar, morrer, ser sofisticadamente congelado e esperar, esperar…

A velhice inevitável

A esperança dos pacientes da Alcor, a hipótese de que é possível alcançar a imortalidade, enfrenta algumas realidades teimosas. Uma delas é a impossibilidade de interromper o envelhecimento sem, ao mesmo tempo, promover cânceres que acabam por causar a morte.

Em sua pesquisa “Competição intercelular e a inevitabilidade do envelhecimento multicelular”, Paul Nelson e Joanna Masel, da Universidade do Arizona, explicam o fenômeno no nível celular e multicelular: com o tempo, as células perdem sua função e param de se dividir, ou seja, “envelhecem”. Depois vem a apoptose, a morte celular programada, mecanismo pelo qual as células “cooperam” para o bem do organismo como um todo e morrem.

Mas as células que ignoram o sinal programado “desfrutam de um benefício de aptidão em relação a células mais cooperativas”. Elas sofrem mutações, ganhando novamente a capacidade de se dividir e se espalhar incontrolavelmente, tornando-se cancerígenas.

“Mecanismos como a função imunológica, a redundância de genes supressores do câncer e a estrutura do tecido afetam a velocidade na qual a cooperação celular é degradada”, observam os autores, acrescentando que esses mecanismos “poderiam retardar significativamente o envelhecimento”, mas que o declínio, no fim das contas, é inevitável. Questionados sobre o assunto pelo Singularity Hub, Nelson e Masel foram taxativos: “A competição intercelular, ou a falta dela, pode eliminar o câncer ou o envelhecimento, mas não ambos. Enquanto você mantém um problema sob controle, o outro piora”.

Bagunça dissonante em eu menor

Se, uma vez descongelados, viver para sempre com o mesmo organismo não parece uma boa ideia — o declínio biológico continuaria seu curso inevitavelmente —, impõe-se a transferência da mente para o suporte tecnológico, para o cérebro artificial. Mas isso traria outros problemas, alguns deles levantados pelo neurocientista Michael Graziano, de Princeton, em um texto no Wall Street Journal: se escaneiam o meu cérebro e o inserem em um dispositivo, quem sou eu: o organismo biológico, mente e corpo, que se move em direção ao seu fim natural, ou a exata cópia mental que “vive” entre metais, chips e fiações? Dois “eus” talvez, cada um acumulando experiências por si mesmo? Como seria a relação do eu-pessoa com o eu-máquina: subordinação de um ao outro ou harmonia?

Poderíamos acrescentar ao questionamento de Graziano — que, afinal, não vê outra “solução” senão esse transplante mental em caso de viagens para muito longe do planeta —, como pode uma mente instalada em uma máquina, sem sensações corporais diretas, compreender a fome, o frio, a dor… Será capaz de saber, sem ter experimentado essas privações, o que é a compaixão e como exercê-la com aqueles que não fizeram o “trânsito” para esse estado “perfeito”?

É conveniente parar. A rigor, tudo isso é fantasia disfarçada de ciência, repleta de suposições arrogantes — justamente o oposto do método científico — e vendida com argumentos como o de que, se Verne previu o submarino e agora isso é uma realidade, não há limites que a tecnologia não pode superar.

Em todo caso, para quem dispor de uma confiança imbatível e de tempo, muito tempo, basta esperar que Fred Chamberlain e os pacientes da Alcor contem tudo.

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